Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Os "advogados dos pobres" ou a indigência da advocacia

Ao escrever o que segue estou consciente que exprimo opinião contrária à da grande maioria dos meus pares profissionais e áquilo que, no domínio dos assuntos da justiça, de há muito que é considerado o "politicamente correcto". Uma quasi-heresia...
Creio, porém, que o debate que na sociedade portuguesa se desenrola sobre o sistema da justiça não pode passar ao lado deste tema. Nem os advogados devem por muito mais tempo ignorar um assunto que lhes diz directamente respeito, postas a nú, como estão a ser, algumas das patologias desse sistema.
A comunicação social fez eco de um estudo, que já conhecia há algum tempo, elaborado por um funcionário de um determinado juizo criminal sobre como aí funcionaram as defesas oficiosas. O estudo limita-se a comprovar com números as suspeitas gerais.
Sem entrar em muitos detalhes, diga-se que o apoio judiciário é um instituto que visa garantir a quem prove não ter posses para contratar os serviços de um advogado, que os seus direitos não ficarão sem protecção, assegurando o acompanhamento do processo por parte de um advogado e dispensando ou diminuindo o esforço do pagamento das taxas pelos serviços de justiça.
Esclareça-se também que essa garantia é assegurada pelos advogados, fazendo parte dos seus deveres estatutários, cabendo à Ordem dos Advogados gerir o sistema de nomeações. Explique-se ainda que esse serviço é pago pelo Estado, não interessando agora discutir se é bem pago ou mal pago em termos absolutos (aspecto que, porém, não é despiciendo e pode ser causa de algumas disfunções). O que importa também explicar é que a "advocacia dos pobres" é subvencionada pelo Estado que despende anualmente alguns milhões de euros.
Ora, o que o estudo revela é o que todos os advogados sabem mas teimam em ignorar:
Que na esmagadora maioria das vezes, mesmo em processos de elevada complexidade técnica, a escolha recai sobre advogados-estagiários que ainda não passaram pelo crivo avaliatório da agregação à profissão.
Que as intervenções, requerimentos ou diligências de defesa produzidas pelos jovens Colegas estágiários são raríssimas.
Que não raras vezes o cidadão conhece o seu defensor oficioso na sala de audiências no dia do julgamento.
Que são incontáveis as recusas da prestação do dever de patrocínio ofícioso por parte dos Colegas mais experientes, obrigando a repetições sem conta das nomeações, sendo que em multiplos casos os arguidos chegam a ter, ao longo do processo, vários defensores.
Que são pouquíssimas as vezes em que o defensor, antes do julgamento (ou da diligência) procura conhecer o processo, mesmo quando a ele tem acesso.
Que, salvo raríssimas e notabilíssimas excepções, o arguido só se apercebe do timbre da voz do seu defensor quando este, convidado a alegar, profere uma das frases mais repetidas pelas salas dos Tribunais: "Peço Justiça".
O problema não é de hoje. Lembro-me dos meus tempos de advogado-estagiário, já lá vão 23 anos, e o panorama era exactamente este.
A questão salta para a consciência colectiva não porque se fez uma honesta avaliação da situação e se chegou á conclusão de que este modelo de assistência judiciária é uma impostura, mas porque o Estado olha, em tempos de vacas magras, para o dinheiro que entrega à Ordem dos Advogados. Isto é, pela pior razão, porque não atende ao que deveria estar em causa. E o que deveria estar em causa é a vergonhosa falta de cumprimento do artigo 20º nº1 da Constituição que a todos assegura o "acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos".
Não me atrevo a escrever que há inocentes injustamente punidos por deficiência destas assim chamadas "defesas". Nunca o poderia provar. Do que não tenho dúvidas é de que, num tempo em que se reclama do Estado que se muscule no combate à criminalidade, não se atenda à necessidade de o mesmo Estado garantir que todos terão, no contronto com o poder persecutório, a garantia de um sólida e competente defesa dos seus direitos, num País onde os políticos enchem a boca com o Estado de Direito ou proclamam o Portugal das liberdades que somos cada vez menos...
E sobre o mais não entendo como é que a Ordem dos Advogados continua sem inquietações de maior a assobiar para os passarinhos, não percebendo que, para o desprestígio social dos advogados (que é uma realidade muitíssimo preocupante) em muito contribui esta situação que, se favorece uns tantos que vivem literalmente à custa de uma "advocacia da indigência", nos divide, aos olhos de boa parte da opinião pública, entre aqueles que sendo maus profissionais são advogados dos que não têm dinheiro; e os outros, bons advogados, que não estão para se maçar com as defesas oficiosas, dedicando o seu tempo e as suas capacidades aos ricos e os poderosos (salvo quando para sua própria publicidade, praticam alguns actos de caridosa advocacia pro bono...).
Por isso, há muito que defendo a criação - também por razões de racionalidade da despesa pública como noutra oportunidade tentarei demonstrar - da figura do defensor público, à semelhança do que existe noutros sistemas, ao qual caberia, em exclusivo, a prestação do apoio judiciário.
E não me venham com a velha estória de que a existência de defensores públicos nos tribunais põe em causa a independência ou o enquadramento deontológico da profissão, porque nada obsta a que esses advogados se submetam às mesmas regras dos que exercem a profissão noutros regimes, nem tão pouco os dispensa de pertencerem à associação pública que procede à vigilância dos princípios e das garantias em que assenta aquela que, para mim, continua a ser a mais nobre das profissões.

3 comentários:

Virus disse...

Como bem diz o caro JMFA, ora aí está uma medida que julgo me parece acertada.

Infelizmente, a nível de execução, e com o constante "divórcio" do Estado das suas funções de Estado, creio ser uma ideia cada vez mais dificil de concretizar... talvez por falta de espaço no OE, ou muito simplesmente de vontade política...

Eficaz, mas pouco mediática, logo não é uma medida a tomar no imediato... apenas quando o sistema "arrebentar" pelas costuras...

A.Teixeira disse...

Excelente post!

Nem merecia que a caixa de comentários fosse poluída por mensagens automáticas promovendo comida para gatos e casotas para cães.

Não quero deixar de destacar o preâmbulo. Das palavras do autor quase se pode extrair que, sobre o problema, há uma análise racional e uma outra análise, de classe profissional.

Anónimo disse...

Meus caros todos, os meus agradecimentos pelos comentários.
Em especial para a minha prezada Colega Conchita gostaria de dizer, em adição ao que postei, que terá muita razão quanto à falta de estímulos para que no actual quadro o apoio judiciário funcione dignamente. E haverá por certo muita incompreensão de magistrados e do poder político pelo papel tantas vezes ingrato do mandatário oficioso.
Estou consciente de tudo isso. Mas estou também certo de que estes problemas não se resolvem com o actual modelo. Muito menos no quadro do prometido IAD que mais não será (se algum dia via a luz) do que a recauchutagem do que existe, sem que se perceba até o que é, do ponto de vista orgânico-funcional, esse assim chamado "Instituto".
O essencial, volto a dizer, é garantir que a defesa de quem necessita de recorrer à assistência judiciária (hoje caricaturada por alguns como a "advocacia da Caixa")tem as mesmas condições objectivas que a acusação para desempenhar o seu papel. E volto a insistir que tal só se conseguirá rompendo definitivamente com esta impostura a que chamamos apoio judiciário, instalando nos tribunais advogados, enquadrados pelo seu estatuto deontológico, mas afectos exclusivamente à defesa dos direitos de quem não tem condições para custear os processos. Advogados aos quais se garanta a autonoma técnica e as imunidades que impeçam a sua "funcionalização".