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terça-feira, 14 de novembro de 2006

Sem nome

A primeira coisa que me chamou a atenção quando a conheci foi uma estranha cicatriz na cara, uma espécie de mordidela pequena que lhe distorcia o riso de uma forma intrigante. Ela reparou logo, como se já estivesse à espera. – “Foi um rato. Entrou no meu berço quando eu era criança. O meu pai era moleiro. Havia muitos ratos por causa da farinha. Fugi de casa aos 9 anos, farta de miséria e maus tratos”.
Eu queria uma pessoa para tomar conta da minha filha, bebé de meses, e indicaram-ma. Vivia sozinha, num quarto alugado, tinha pouco mais de 20 anos. Gostei dela, do seu ar limpo e independente, um pouco arrogante, de quem estava habituada a defender-se das agruras da vida.
Ficou connosco 5 anos, como se fosse da família. Mas tinha o sonho de casar, de ter a sua casa, a sua família e começou o namoro com aquele homem estranhíssimo.
Rude, obsessivo, bem parecido, propôs-lhe casamento ao fim de 2 meses. Ainda a avisei, havia sinais que não enganavam, sobretudo aqueles olhos fugidios de falsa humildade. Mas ela tomou isso como ciúme, achou que era eu a não querer ficar sem ela. Podia ser, de facto, e acabei por me calar. Fui até madrinha…
Comecei a ter avisos dos vizinhos pouco depois, que ele se metia lá em casa, que era ele que vinha buscar as minhas filhas à carrinha, que ficava escondido à espera que eu chegasse. Falei com ela e chorou muito, que eu não a mandasse embora, que ia ter um filho, que o marido tinha ciúmes mas havia de passar. Ele havia de mudar. E foi ficando, levava a filha com ela…
Comecei a notar-lhe medo. Não atendia o telefone, respondia-me com evasivas, atrasava a hora de saída sem razão nem porquê. Tentei que me contasse, mas iludia a conversa. Um dia, tinha a filha dela 2 meses, tive que chamar a polícia para entrar no meu prédio, porque ele estava á porta, jurava matar toda a gente que se lhe atravessasse no caminho. Na polícia, ele disse que queria que ela deixasse de trabalhar, que a mulher dele era para ficar em casa e que ele é que sabia o que lhe convinha.
Encontrei-a há pouco tempo na rua, já passaram quase 20 anos. Chamou-me com um ar nervoso e hesitante, como se esperasse uma agressão. Tinha a cara marcada, a cicatriz que eu lhe conhecia mal se via no meio do nariz torto, a boca ferida, as rugas profundas. Contou-me em poucas palavras os anos de humilhação, de violência, de sequestro difícil de imaginar. Não tem telefone, não vai buscar as filhas à escola, não fala com ninguém. Tinha ido ao médico a correr, antes que ele desse por isso, com sorte chegava a casa antes dele.
E olhava tresloucada a toda a volta, num gesto reflexo de quem se defende, de quem tem pavor, com medo da própria sombra. Disse-lhe que há forma de sair daquilo, de ter apoios, de ser ajudada.” – Já não consigo ajudar-me a mim própria, disse ela. Já não existo”. Riu-se com acidez. “Dantes preocupava-me tanto com a cicatriz! Diga-me outra vez o meu nome, gosto de ouvir…”

8 comentários:

Dunyazade disse...

Porque é que eu tenho tão pouca compaixão por estas mulheres...?

RuiVasco disse...

Não seu responder-lhe dunyazade, com certeza absoluta! Mas podemos tentar imaginar uma situação que você nunca tenha vivido, onde, para um ser fragilizado, um qualquer sinal é uma esperança e vida!
E, porque nesta nossa sociedade de hoje, há seres "estranhos", "simuladores" de moralidade e felicidade, em que os mais frageis acreditam com facilidade! ...até um dia, em que mais uma vez tudo se esvai! E, os mais frageis ficam à espera de uma "nova esperança" até lhes aparecer, de novo, mais um dunyazade! Porque estes só atacam os fracos!
Desculpe o trocadilho dos nomes mas, é apenas um exercicio...

Anónimo disse...

Dunyazade: quem vive, ou sonha que vive, no ambiente das mil e uma noites, jamais será capaz de entender o drama de quem tudo sacrifica à esperança.

Tonibler disse...

A pior das misérias...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana, faz doer o coração ouvir: ”Já não consigo ajudar-me a mim própria,... Já não existo”.
Este é mais um caso de violência doméstica, escondida e envergonhada.
Esta é mais uma daquelas mulheres que sofrem em silêncio, rendidas a um destino que pensam elas só pode ser aquele e não outro.
O sofrimento assume uma profundidade tal, que estas mulheres deixam de pensar, deixam de acreditar que a sua vida não tem que ser assim, que pode e deve ser diferente.
Muitas destas mulheres não se "confessam", acabando algumas delas por serem ajudadas, normalmente clandestinamente por uma mão amiga.
Casos como este e todos os outros, deveriam ser amplamente divulgados, para que o País tenha bem a noção deste fenómeno e exerça a pressão necessária para que sejam adoptadas políticas que ajudem as vítimas, previnam a violência e punam exemplarmente quem a pratica.

Anónimo disse...

Cara Marina Santos, a pena é de facto um sentimento que não se deve ter. Nesse ponto tem inteira razão. Mas só porque a comiseração nunca ajudou quando em causa está a dignidade humana.
Ao ler comentários como os que a cara Marina fez pergunto-me como por estes tempos se tem uma enorme dificuldade em surpreender os verdadeiros vícios e a autênticas virtudes.
Posso até perceber a perspectiva de que esta mulher, como muitas outras, é culpada de fraqueza. Rebaixa-se, é culpada de se rebaixar. Deixou que lhe roubassem a identidade e não cumpriu o dever de defender esse que é o seu património mais íntimo. É culpada também por isso. Deixou-se levar pela esperança de viver feliz na companhia de um homem, como é ambição natural e é culpada da suprema ingenuidade de não ver o que outros olhos, decerto não toldados pela paixão ou pelo excesso de esperança, já tinham visto. É culpada sim senhor.
Mas, cara Marina, culpada de tudo isto e não merecendo comiseração, merece condenação? Ou merece a compreensão e a ajuda que uma sociedade autenticamente solidária deve dedicar aos mais fracos?
E já agora, mesmo que se considere a culpa desta mulher por se despojar da sua dignidade, é tolerável a atitude do homem que a agride e lhe subtrai a identidade?
Quero por fim dizer que esta estória tem uma mulher como vítima. Mas poderia ter um homem que pelos mesmos motivos alienou o mais íntimo da sua personalidade e vive subjugado a um amor que rapidamente se transformou no mais horrível dos pesadelos. Conheci um assim. Também ele perdeu o nome. E na cidade em que nasci e me criei esse homem só era conhecido pela degradante alcunha pelo qual a mulher o tratava. O juizo que faço, pelo facto de a agressora ser a mulher, é exactamente o mesmo.

Massano Cardoso disse...

Claro que há pessoas que não “percebem a razão de tanta pena destas mulheres” nem “sentem compaixão por estas mulheres”. Sabem porquê? Porque nunca foram “mordidas” por ratos em criança… Viver a desgraça alheia é um exercício muito difícil. Os comportamentos posteriores têm de ser explicados e interpretados à luz de vivências muito violentas e negativas.
Mulheres com “cicatrizes” há muitas, morrendo antes do tempo…
Muitas vezes sentimos impotentes para “reanimar” certas almas.
A sua história, Suzana, incomodou-me e fez-me recordar tantas histórias que eu já ouvi ao longo de muitos anos…

Suzana Toscano disse...

Cara Marina Santos, não estou mesmo nada certa de que essas pessoas sejam fracas ou, pelo menos, mais fracas que o comum dos mortais. Muitas vezes, é exactamente porque começam por ser corajosas, por exemplo porque não querem prejudicar os filhos ou porque não lhes podem garantir alternativas melhores, ou porque não querem atirar os seus problemas para cima dos outros ou criar outras dependências, que vão ficando cada vez mais neutralizadas. Quem agride, fisica ou psicologicamente, seja marido, mulher, pais ou filhos,sabe da fragilidade do agredido e joga com isso.Até que ponto é que as pessoas se habituam a isso, acabando por rejeitar outras soluções, como diz no seu comentário, é outra questão, que em nada diminui a natureza do drama. Há pessoas, felizmente a maioria, que nunca deram com outra que se encarniça a dominá-las,seja pela força, seja pela mente, seja pelo dinheiro, seja pelos afectos que geralmente se misturam na origem destas situações.Mas há outras com menos sorte, que não reparam a tempo ou que minimizam a tirania e julgam ter forças para a contornar.Não sei se são dignas de misericórdia ou de compaixão,nem sei se isso lhes será suficiente. Mas, no mínimo, não devem ser julgadas como fracas ou cobardes. Cobarde é o que ataca e domina,espezinhando quem lhes está ao alcance e isso merece sem dúvida a revolta e a rejeição de quem assiste, condenando esses comportamentos para que a tolerância social, que muito tempo existiu e ainda subsiste, deixe por uma vez de lhes dar cobertura.