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segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Surpreendente ou talvez não

Hoje, Kofi Annan fez saber ao mundo que entende que a situação no Iraque é pior do que no regime de Saddam Hussein.
Kofi Annan é o exemplo vivo de que, nalguns cargos, a coragem de quem os ocupa só surge com o fim do mandato, à medida que a responsabilidade se vai tornando cada vez mais leve.
Há tempos, a propósito de um caso da política doméstica, um amigo dizia-me que a sobrevivência em alguns lugares alimenta-se de elefantes. Annan mostrou uma enorme capacidade de digestão!
A situação catastrófica no Iraque não é de agora. Só um absoluto insensível não a pressentiria há muito. Só um cego não a veria quando começou a perceber-se o erro nas motivações da guerra. A denúncia de Annan, essa sim, é de agora, a escassos dias de cessar o seu mandato, com o propósito de que a História não registe o cúmplice conformismo do cessante Secretário-Geral das NU.
Engana-se. Kofi Annan vai nela figurar como o homem que, tendo um estatuto que o habilitava - como a nenhum outro - para o arbitramento da paz, foi incapaz de um gesto para mudar o sangrento curso das coisas.
E registará mais. Não deixará perder a memória de que a coragem lhe chegou na hora em que a simpatia da Administração norte-americana deixou de valer.

3 comentários:

Flávio Gonçalves disse...

Não disse mentira nenhuma, o Iraque actual é um pesadelo para toda a população, no regime anterior era-o apenas para os opositores do regime (que nem eram assim tantos).

Anónimo disse...

Independentemente das considerações sobre se a intervenção militar no Iraque se tinha justificado para garantir a segurança dos EUA – e, portanto, da Europa – agora justifica-se certamente. Desequilibrou-se, mais uma vez, o complexíssimo puzzle do Médio Oriente, retirando-se de cena um actor fundamental.

O pai do Presidente George W. Bush – a quem foi reconhecido um vasto conhecimento e competência nos assuntos de política internacional – não cometeu o mesmo erro. Todos acharam estranho – incluindo os insignes jornalistas, sempre com os dentes a pingarem o sangue dos outros – que, durante o primeiro conflito armado com o Iraque, realmente por causa do Koweit, não tivesse decidido avançar até Bagdad e derrubar o regime de Hussein.

Como tinha razão.

Não se podem ignorar as lições da História recente. O pior Presidente dos EUA de sempre, James Carter, não só deixou os russos avançar em todos os continentes, sempre sob o pretexto de cumprir rigorosamente com o respeito dos direitos humanos, como suspendeu o fabrico da bomba de neutrões e do então melhor bombardeiro estratégico do mundo, o B1, como – ainda mais grave – tirou o tapete ao Shá do Irão.

O Shá Palevi era educado em moldes ocidentais. A despeito da sua política de intransigência que provocou o primeiro embate petrolífero, em 1973 – que, para além de razões relacionadas com a Guerra do Yom Kippur, se repercutiu no milionário enriquecimento do seu país, cuja sociedade pretendia modernizar e favorecer – era uma peça incontornável no xadrez do Médio Oriente. O país mais poderoso e melhor armado de toda a zona. Essencial para a manutenção da estabilidade, para a gestão da difícil política de boa vizinhança entre os próprios países circundantes. Era um aliado precioso.

Apenas poderá haver um descomprometimento militar no Iraque muito faseado, gradual, sendo certo que o dinheiro que aí se poupará vai esvair-se em cooperação a favor de todos os campos da sociedade civil, num país com o aparelho produtivo diminuído à última expressão e destroçado também socialmente. Veremos se a extracção e venda do petróleo compensa. Talvez não cheque para o auto sustento e o desenvolvimento económico e social.

A Jordânia foi egipcializada. Ou ainda menos. Mas a Síria não é a mesma coisa. Recorre a métodos pouco ortodoxos de ética internacional e, compreensivelmente, fixa-se nos Montes Golã, que lhe pertencem, e no Líbano, que julga – e bem, na sua óptica – indispensável manter reduzido à posição de Estado vassalo, ou de quinta particular. A Síria tem contas a ajustar com a Jordânia e com o Iraque. Está preocupada, e tem razões para isso, com os efeitos desestabilizadores do conflito ao seu lado e com a penetração subterrânea do Irão, inclusive no seu território.

Tudo regimes, como se sabe, altamente democráticos e defensores das liberdades… como era o Iraque. É necessário não tirar tapetes a Shás para deixar que sejam substituídos por soluções piores – e muito mais perigosas para a nossa segurança.

Boutros Boutros Gali, o anterior S.-G. da ONU, decidiu, mais do que criticar os EUA durante o seu mandato, manejar a desfavor dos seus interesses nos bastidores em Nova Iorque. Foi quase proscrito. Kofi Annan só agora se manifesta. Durante o exercício das suas funções, preferiu não ser conflituoso e entendeu que os interesses do mundo eram melhor servidos assim. O outro era sério mas mau político: disse mal e manobrou, mas também não se ganhou nada com isso.

Anónimo disse...

Independentemente das considerações sobre se a intervenção militar no Iraque se tinha justificado para garantir a segurança dos EUA – e, portanto, da Europa – agora justifica-se certamente. Desequilibrou-se, mais uma vez, o complexíssimo puzzle do Médio Oriente, retirando-se de cena um actor fundamental.

O pai do Presidente George W. Bush – a quem foi reconhecido um vasto conhecimento e competência nos assuntos de política internacional – não cometeu o mesmo erro. Todos acharam estranho – incluindo os insignes jornalistas, sempre com os dentes a pingarem o sangue dos outros – que, durante o primeiro conflito armado com o Iraque, realmente por causa do Koweit, não tivesse decidido avançar até Bagdad e derrubar o regime de Hussein.

Como tinha razão.

Não se podem ignorar as lições da História recente. O pior Presidente dos EUA de sempre, James Carter, não só deixou os russos avançar em todos os continentes, sempre sob o pretexto de cumprir rigorosamente com o respeito dos direitos humanos, como suspendeu o fabrico da bomba de neutrões e do então melhor bombardeiro estratégico do mundo, o B1, como – ainda mais grave – tirou o tapete ao Shá do Irão.

O Shá Palevi era educado em moldes ocidentais. A despeito da sua política de intransigência que provocou o primeiro embate petrolífero, em 1973 – que, para além de razões relacionadas com a Guerra do Yom Kippur, se repercutiu no milionário enriquecimento do seu país, cuja sociedade pretendia modernizar e favorecer – era uma peça incontornável no xadrez do Médio Oriente. O país mais poderoso e melhor armado de toda a zona. Essencial para a manutenção da estabilidade, para a gestão da difícil política de boa vizinhança entre os próprios países circundantes. Era um aliado precioso.

Apenas poderá haver um descomprometimento militar no Iraque muito faseado, gradual, sendo certo que o dinheiro que aí se poupará vai esvair-se em cooperação a favor de todos os campos da sociedade civil, num país com o aparelho produtivo diminuído à última expressão e destroçado também socialmente. Veremos se a extracção e venda do petróleo compensa. Talvez não cheque para o auto sustento e o desenvolvimento económico e social.

A Jordânia foi egipcializada. Ou ainda menos. Mas a Síria não é a mesma coisa. Recorre a métodos pouco ortodoxos de ética internacional e, compreensivelmente, fixa-se nos Montes Golã, que lhe pertencem, e no Líbano, que julga – e bem, na sua óptica – indispensável manter reduzido à posição de Estado vassalo, ou de quinta particular. A Síria tem contas a ajustar com a Jordânia e com o Iraque. Está preocupada, e tem razões para isso, com os efeitos desestabilizadores do conflito ao seu lado e com a penetração subterrânea do Irão, inclusive no seu território.

Tudo regimes, como se sabe, altamente democráticos e defensores das liberdades… como era o Iraque. É necessário não tirar tapetes a Shás para deixar que sejam substituídos por soluções piores – e muito mais perigosas para a nossa segurança.

Boutros Boutros Gali, o anterior S.-G. da ONU, decidiu, mais do que criticar os EUA durante o seu mandato, manejar a desfavor dos seus interesses nos bastidores em Nova Iorque. Foi quase proscrito. Kofi Annan só agora se manifesta. Durante o exercício das suas funções, preferiu não ser conflituoso e entendeu que os interesses do mundo eram melhor servidos assim. O outro era sério mas mau político: disse mal e manobrou, mas também não se ganhou nada com isso.