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domingo, 6 de abril de 2008

Do efeito terapêutico ao suicídio solar...

Quando andava na escola primária, durante as férias grandes, ocorria um fenómeno migratório muito interessante.
Na altura vivia na estação dos Caminhos de Ferro. No início dos meses quentes, enchiam uma carruagem de terceira classe com crianças das escolas rumo à Figueira da Foz para frequentarem uma colónia de férias em Buarcos. Ficavam acantonadas durante algum tempo à espera de serem atreladas ao Trama que partia pelas 10 horas. Crianças pálidas, magricelas, pobremente vestidas, com bonés de palha enfiados até às orelhas, escondendo muitos olhos tristes e desconfiados, não percebendo muito bem muito para onde iam na primeira viagem de comboio que tinha como destino a praia e o mar nunca vistos. Outros, experientes de épocas anteriores, manifestavam a algazarra típica dos putos, em perfeito contraste com a caloirada. As funcionárias, atarefadas, conseguiam com gestos autoritários controlar o rebanho naquele redil ambulante.
A procura do mar era uma tentativa para solucionar muitos males que então atingiam as crianças portuguesas. Muitas eram raquíticas, anémicas, depauperadas pela insuficiência alimentar e até escrofulosas.
Numa das janelas vi o Brás, meu colega de carteira, que tinha escrófulas no pescoço que drenavam, frequentemente, uma massa tipo queijo que os panos presos por adesivos não conseguiam reter. O mês de sol, de banhos e de “ricas” refeições e lanches distribuídas ao longo do dia contribuíam para a saúde dos miúdos. O Sol terapêutico de um país cinzento.
Passados alguns anos, ir à praia começou a ser um ritual para os mais favorecidos. Os menos afortunados, cientes dos benefícios terapêuticos, aforravam, com muito sacrifício, ao longo do ano, algum dinheiro com esse objectivo.
Durante muito tempo, a ida à praia era considerada uma bênção da natureza capaz de resolver muitos males. Havia, também, a consciência de algum perigo. Assim, antes de irem a banhos consultavam um médico, principalmente as crianças. Nenhuma mãe tinha o “atrevimento” de levar o seu rebento sem autorização do clínico. Por quê? Para saberem se os pulmões estavam bons. Se houvesse indício de problemas sabiam que a praia podia “puxar” pelo mal. Os médicos mais velhos lembram-se muito bem do ritual da aplicação do “adesivo” para fazer a prova tuberculínica às crianças. Aplicado nas costas dos miúdos, fora do alcance das suas unhas, era retirado dois dias depois. Ao terceiro dia procedia-se à leitura e dava-se o veredicto: - Pode ir. Não há problemas. A criança está em condições.
Com o tempo, e com a democratização de acesso ao mar, graças, felizmente, a aumentos dos proventos económicos, a praia e a busca do sol deixaram de ser vistos com objectivos terapêuticos e passaram a integrar a esfera da recreação. Esta mudança de atitude levou, e continua a levar, a exageros difíceis de entender traduzidos na exposição excessiva aos raios solares. Como é possível que, após longas e persistentes campanhas de informação sobre os perigos das radiações, as pessoas, teoricamente mais “cultas”, se expõem de maneira tão ridícula, tão patética, tão suicida em longuíssimas horas de solarização cutânea? Será que ainda não sabem que correm riscos muito elevados de cancros da pele, entre os quais se destaca o temível melanoma maligno, de envelhecimento prematuro e de diminuição das defesas orgânicas?
Muitos, ao regressarem das praias, negros que nem uns chamiços, pretendem testemunhar um pseudo status social que, hoje em dia, não é mais do que um sinal de irresponsabilidade e de profunda ignorância, contrastando com a humildade e ânsia terapêuticas, muito mais racionalista, de algumas décadas atrás.
Saborear os divinos raios solares, sim. Deixar-se fulminar pelos raios diabólicos da inconsciência, não. Os primeiros salvam, os segundos matam. Que diga o meu colega Brás que se curou, mas o mesmo não posso dizer de outros que vi e que o sol matou…

8 comentários:

Bartolomeu disse...

É este o exemplo do verdadeiro serviço público, caro Professor.
"Negro que nem um chamiço"
Ha uma quase eternidade, não ouvia este termo, assim como não ouvia falar do famoso adesivo. Também mo colocavam todos os anos, antes de terminar o período de férias no campo, a que se iria seguir uns dias de praia.
Desde esses tempos, um chorrilho de exageros começaram a marcar negativamente a nossa sociedade. Uma inconsciência colectiva e um despreso completo por regras elementares de protecção, deram origem ao aparecimento frequente de diferentes mazelas, algumas, tal como o caro professor refere, de carácter ierrecuperável.
É triste, mas são os sinais de um tempo que não tem de ser de inconsciência e inconsequência, sobretudo, porque a informação disponível não deixa dúvidas e porque os avisos são explícitos.
Entretanto... goze-se o que de bom o sol e o mar têm ainda para nos oferecer, beneficiando-nos e melhorando-nos a qualidade de vida.

Anónimo disse...

Caro Professor Massano Cardoso, tentarei contribuir para a satisfação das suas dúvidas contando-lhe o meu caso pessoal, a minha posição pessoal quanto ao tema e fazendo a analogia em relação ao tabaco onde a minha posição é exactamente igual.

Sim, sei que apanhar sol nas horas de maior incidência solar constitui um factor propiciador a melanomas e outras maleitas da pele. Sim, estou plenamente informado que posso vir a padecer de graves problemas no futuro que inclusivamente podem levar-me à morte. Da mesma forma que sei que o tabaco faz mal aos meus pulmões - e sinto esse mal - e que estou em risco acrescido de cancro de pulmão no futuro.

Conheço o sofrimento causado pela morte pelo cancro dado que tenho acompanhado a morte do ramo materno da minha familia em que todas as fatalidades têm sido por essa causa.

Estou plenissimamente informado e consciente dos riscos em que incorro quer por apanhar sol nas horas de maior calor quer por fumar. Estou ciente de que um dia mais tarde, a qualquer momento, posso vir a ter doenças que são passiveis de causar-me incómodos, sofrimento e morte.

Sabendo tudo isto, serei eu um tremendo inconsciente, um rematado cretino que põe em risco a sua vida como quem pratica desportos radicais extremos? Não. Sou alguém que sabe também outras coisas. Sei, por exemplo, que estar numa praia deserta, ao sol, pela tarde fora, em silencio, sozinho e a ler, dá-me um prazer quase inigualavel. Sei que fumar um cigarro dá-me a capacidade de raciocinar com mais clareza em certas alturas e acima de tudo sei que fumar um cigarro sabe-me muitissimo bem.

Apanho sol nas horas de maior calor? Sim. Fumo? Sem dúvida. São dois riscos que optei assumir na minha vida. Isto faz de mim inconsciente? Claro que não. Apenas indica que, conhecedor dos riscos, assumi a probabilidade da sua ocorrência e continuo a fazer estas duas coisas que me dão prazer.

Bartolomeu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bartolomeu disse...

Caríssimo Zuricher, presto-lhe as minhas homenagens pela grande coragem que demonstra possuir. Só consigo encontrar paralelo para a sua opção de vida, nos bravos e valorosos actos dos bombistas suicidas.
De todo o modo, gostaria de lhe colocar uma questão: Quando precisa de atravessar uma estrada com tráfego intenso, procura uma passagem de peões e espera para atravessar que apareça o homenzinho verde, ou, nem para e vai d'embute, os condutores que parem, é para isso que os calhambeques, trazem 3 pedais? E numa passagem de nível, espera junto à cancela enquanto soa o trrim... trrim, ou borrifa-se para esses avisos e passa à frente do machibombo, sem deixar de lhe lançar um olhar enviezado de despreso?
Hummm, não quero especular, mas arrisco supor que, nos momentos de maior tédio, o amigo distrai-se com aquele joguinho inofensivo que chamam vulgarmente de roleta russa.
Até pode acontecer e é meu desejo que aconteça, o amigo morrer lá para os noventa anos, saudável...e não negro que nem um chamiço, por dentro e por fora.

Rui Fonseca disse...

Gostaria de comentar este seu post sem constrangimentos mas faltam-me os acentos e as cedilhas. Mesmo assim arrisco dizer alguma coisa a proposito.

A proposito da Figueira da minha infancia recordo-me que os tratamentos balneraes eram administrados a miudagem por um banheiro que vestia um casaco de oleado amarelo e um chapeu do mesmo material e cor agarrado por uma correia que lhe passava por debaixo do queixo. Parecia um bombeiro. As calcas eram de flanela as riscas, agarradas por uma cinta que ele dobrava a volta da cintura amarrando uma das pontas a um dos postes de uma das barracas da praia e ia dando voltas sobre si mesmo ate chegar ao poste a que se amarrara. Parecia um toureiro.

O banheiro era isso: um bombeiro toureiro que nos mergulhava nas ondas, segurando-nos com o braco direito enfiado entre as pernitas dos sacrificados e o braco esquerdo a aparar-lhes o peito.

Quando esperavamos que o ritual tinha chegado ao fim em altos berros havia um abanar de cabeca que mandava repetir a dose.

Mas eram sacrificios que tinham contrapartidas depois durante a manha inteira.

Naquele tempo, as ondas batiam forte no Forte de Santa Catarina, os molhes ainda nao existiam, havia rochas na praia que estao agora soterradas por aquele areal imenso, podiamos avancar pelo mar dentro em dias de mare baixa e um cheiro a maresia inconfundivel.

Ficou-me de tal modo gravado na memoria aquele odor a mar que, quando mais tarde, voltava a casa aos fins de semana na automotora da linha do Oeste, acordava de cinco horas de viagem, feitas na ponta final a dormitar, quando aquele cheiro familiar se me retiniam no olfacto.

Tinhamos, naqueles tempos, praia mas nao tinhamos uma entrada facil no rio. Muitos pescadores morreram do outro lado da entrada da barra porque o assoreamento da foz nao permitia que se safassem.

A outra leitura do seu post remete-me para as contradicoes deste mundo. Morre-se por falta de sol e por excesso dele. Mas o mais dramatico e que continua a fome a ser a doenca que mais mata numa epoca em que cada vez mais gente morre por excesso de comida.

Afinal temos de morrer de qualquer modo e ha muito quem pense que e melhor morrer pelos excessos.

Sera?

Massano Cardoso disse...

Caro Zuricher

Claro que não é um “refinado cretino”. Longe de mim querer insultar alguém! Cada é um livre de fazer o que lhe der na real gana. Eu também sou livre de dizer o que vai na minha plebeia mente. E disse o que disse porque não só pensei, como também “senti”. O Sol é fonte de vida e também de doença. Também gosto de estar ao sol, mas tomo aquilo que se chamam as devidas precauções para saborear o prazer de uma tarde. Mas, confesso que, apesar de respeitar a liberdade das pessoas, não consigo compreender certos comportamentos. Esta posição deve ser enviesada, reconheço, pelo facto de conhecer as “dores” do corpo, e sobretudo, as da alma, quando confrontamos certas situações clínicas.

Caro Rui Fonseca
“Afinal temos de morrer de qualquer modo e há muito quem pense que é melhor morrer pelos excessos.
Será?”
Que temos de morrer é um facto. Por excessos? A minha formação leva-me a que contribua para que as pessoas possam viver mais tempo e com mais saúde, adiando para o mais tarde possível a saída do palco. Muitos, dos que partilham da filosofia dos excessos, acabam por arrepender-se quando adoecem. Mas fique ciente que ninguém é objecto de qualquer culpabilização ou de recriminação. São poucos, mesmo poucos, os que voltariam atrás e alterariam os seus hábitos.
Também partilho das suas lembranças os tempos em que as águas batiam no forte de Santa Catarina, mas abominava a tortura do banheiro-carrasco...

Caro Bartolomeu

Pelas suas palavras entendo que não partilha a “ideologia” de “negro que nem um chamiço”...

Bartolomeu disse...

Entendeu perfeitamente, caro Professor.
Assim como não partilho outras "ideologias" que têm por base o excesso.
Quando bebo não me aproxim da embriaguêz, corro sem atingir o ponto de deitar os "bofes de fora", nado ao longo da praia, fora da zona mais cheia de gente, mas sem me afastar demasiadamente, conduzo com um pouco mais de velocidade em auto-estrada, quando não ha trânsito, não fumo, a minha capacidade de raciocínio não foi capaz de entender por que carga de água mete um fulano um tubo de papel, composto com chumbo e alcatrão, carregado com folhas de tabaco moído cheio de insecticidas e pesticidas na boca, chega-lhe lume à ponta, inspira o fumo produzido por toda aquela caldeirada e no fim, expele-o sentindo-se o irmão-gémeo do super-homem.
Não me considero porém um virtuoso, nem pretendo atingir a imortalidade, nem considero contudo que a minha vida seja monótona. Sou feliz quando tudo se conjuga nesse sentido, do mesmo modo, quando isso não sucede, tenho os meus momentos de infelicidade. Porém, a minha ideologia assenta tambem em aproveitar e valorizar quanto possível as amizades, o bem-estar físico e psicológico, a família, o mundo, excessos para quê? Não acrescentam nada de valorizável às nossas vidas!

jotaC disse...

É interessante verificar como muitos de nós temos coisas comuns, como estas recordações de infância…
Eu, quando era puto, nascido e criado numa aldeia muito longe do mar, de nome São Cosmado, concelho de Armamar, tive a sorte de conhecer uma família do Porto que, pela primeira vez, com oito anos de idade, me levou a ver o mar. O Srº chamava-se Diamantino Pombo, e era médico; a Srª. chamava-se Lídia, geria apenas a casa (tinha criada residente), e recordo-me que era excepcionalmente bonita, tipo Marylin Monroe. Tinha dois filhos, gémeos, o Diamantino e o Paulo, mais velhos do que eu três anos. Todos os verões, esta família aparecia na minha aldeia, juntamente com o seu carro preto, um Ford (?) com grandes pára-choques e frisos longitudinais cromados.
Inicialmente por interesse, mas depois por confiança e amizade, acabaram por estabelecer relações com os meus pais, que passaram a ser os “zeladores” da casa do barrocal (era este o nome dado à propriedade onde estava implantada a casa da aldeia), durante o resto do ano.
Findos os quinze dias de férias do Srº Drº., a família regressava à casa do Porto, situada junto ao Jardim de Arca de Água, e com eles, passei a ir eu para passar o resto das férias grandes com os gémeos.
Todos os dias de sol, a Dª Lídia, dava o dinheiro ao Paulinho para comprar três bilhetes do eléctrico até à praia do Castelo do Queijo (no Porto), e para três gelados.

E foi assim, aos oito anos de idade, graças à simpatia daquela família (e, porque não dizê-lo, também à minha, senão não me levavam com eles), que vi pela primeira vez a imensidão do mar e senti a sua água salgada a fustigar-me os pés, e fiquei a saber o sabor que tinha um gelado!