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sexta-feira, 11 de abril de 2008

Entrevista a Yuri Kozyrev -- O fotojornalismo actual

A Quartarepública aceitou o repto do Expresso com o seu habitual entusiasmo pelas novas descobertas da blogosfera e aqui estamos a divagar sobre um dos temas.
A próxima edição do Expresso inclui, no caderno Actual, uma entrevista com o fotojornalista Yuri Kozyrev, que vive em Bagdad e que assume o jornalismo como uma missão, ou uma “causa” através da qual tenta “melhorar” a vida das pessoas que fotografa. No entanto, parece que a adesão a esta forma de intervenção vai diminuindo e este tipo de reportagens não tem hoje a colocação garantida de outros tempos, e até o próprio evita responder à pergunta "porque é que há-de alguém gastar a vida numa guerra que não é a sua?"
Talvez as pessoas já estejam saturadas de estímulos constantes à sua compaixão, à sua revolta ou à sua adesão a todo o tipo de interpelações. Para conseguirem alguma eficácia, uma vez que a concorrência é grande e os meios múltiplos, as “causas”, ou os seus defensores solitários, como é o caso dos fotojornalistas, usam imagens cada vez mais agressivas e insistentes, criando níveis crescentes de insensibilidade a quem as vê. Para informar, para transmitir? Não. Para impressionar. Para conquistar adeptos, que é como quem diz para condicionar os juízos e tentar impor os seus valores. Eles, que estão lá e viram, vêm perturbar os que não sabem, querem levá-los lá, para que vejam e sintam como eles. Para atormentar, se for preciso.
Por isso as pessoas, carregadas de tormentos, já não querem ser alvo de mais emoções e preferem, como diz a reportagem, ver belas e artísticas fotografias do deserto ou as imagens captadas num impulso genuíno pelos simples habitantes. Defendem-se, e por isso folheiam nas revistas as páginas com massacres, catástrofes ou desgraças pessoais com um distanciamento de quem já sabe que tem que se precaver de quem o quer acusar de continuar impávido depois de ter visto “a causa”.
Um fotojornalista é invasivo quando não quer mostrar imagens mas apresentar temas. Nesse caso não é um artista, nem um repórter, é um activista que pode também ser artista ou repórter. As pessoas nem sempre querem ser confrontadas com causas, e muito menos querem sê-lo o tempo todo, página a página, programa a programa, todos os dias, das mais próximas às mais longínquas, das mais simples às mais sofisticadas. Temos a causa dos cães abandonados, com a fotografia do animal esquelético e triste, quase a ser atropelado por um arrogante carro de luxo. Como temos a causa do aquecimento global, com os glaciares a derreter e as gretas da terra ressequida a marcar o caminho dos pés descalços e poeirentos. Entre um pobre animal e a humanidade, um rosário infindável de urgências que exigem a nossa sensibilidade e reclamam a nossa acção, já! As pessoas a lutar por um pouco de felicidade e a desgraça a entrar pelos olhos dentro, a todo o tempo, com imagens brutais e impiedosas, insidiosamente acusadoras...
O papel do fotojornalista não é o de um mero observador atento mas o de um mensageiro que não deixa incólume o que retrata. Compõe, avalia e fixa, tal como escolheu mostrar. Sempre que tocamos uma coisa, transformamo-la, para o bem e para o mal e muitas vezes, até por cobardia, não se valoriza isso, para deixar menos claro o compromisso.
É muito interessante ler, a este propósito, o romance de Arturo Perez Reverte, “O Pintor de Batalhas”, que conta a história de um fotógrafo de guerras que durante muito tempo julgou que as guerras eram palcos onde ele se movia com a sua máquina, com a sua técnica, escolhendo planos e imagens que depois divulgava como se a tanto se resumisse a sua acção. Mero espectador, mero divulgador, assim se entendia ele, libertando-se a cada momento de cada escolha que fazia.
Enganava-se, e vê com surpresa as consequências de uma imagem que divulgou, que ganhou vida própria, causou desgraças, suscitou vinganças e, finalmente, vingou-se dele, o responsável que lhe deu vida. Julgava que a sua intervenção acabava quando mandava para publicação, endossava e esquecia o que divulgava, e eram homens, vidas, mortes, que continuavam o seu caminho através das fotografias, desvendando ou construindo outras histórias. A outra terrível constatação foi a de que, pelo facto de lá estar a fotografar, poder ter determinado a acção, o grau dela, passando a ser quase o autor das atrocidades. Eles matavam para ele ver, para fazer o clic da máquina e apresentar, teatro de guerra, não é como lhe chamam? Quem é actor e quem é espectador?
Vale bem a pena ler, é uma brilhante reflexão sobre a comunicação, a força da imagem, as falsas isenções, ainda que inconscientes, de quem ouve, vê e transmite.
É nesse livro que alguém diz ao repórter que “o mundo está saturado de malditas fotos”...

5 comentários:

Bartolomeu disse...

Excelente comentário o seu, cara Suzana.
Como apresentava Artur Albarrn, "a tragédia... a dor".
Depois de algumas reportagens em cenário de guerra, contactando directamente com o destroçar e estropiar da vida humana, é certamente inevitável que o jornalista se questione acerca da validade do seu trabalho, inclusivé,sobre a compreensão da relaidade das imagens que ele testemunhou e enviou para... o outro mundo. O mundo do conforto, da segurança, inclusivé o mundo que está a usufruir de alguma forma, dos efeitos dessa mesma guerra e dessas mesmas vidas dizimadas.
A avidez da opinião pública pelo impacto das imagens, atingiu o absurdo. Lucraram os jornais, os jornalistas, uma industria que floresceu paralelamente, sobreveio aquilo que caracteriza o ser humano perante o excesso, o nojo.
Porem, o magma mantem-se inalterávelmente em fusão e a erupção ocorre sem aviso, é necessário que não esqueçamos nunca essa ameaça.

Pinho Cardão disse...

Cara Suzana:
Diz que "talvez as pessoas já estejam saturadas de estímulos constantes à sua compaixão, à sua revolta ou à sua adesão a todo o tipo de interpelações".
De facto, a repetição traz saturação. Também nas imagens violentas. E não leva, infelizmente, ao atenuar da violência. A este propósito, lembro-me de uma conversa tida, há mais de vinte anos, com o Dr. Cunha Rego, impressionado que ele estava com um acontecimento sangrento, não me lembro já qual. Na altura, não era normal os telejornais darem imagens violentas, sobretudo de sangue, que ferissem a sensibilidade das pessoas. Dizia o Dr. Cunha Rego que o choque da passagem das imagens reais desse acontecimento concreto e de outros similares levaria a uma reacção tal que poderia provocar um levantamento e fazer apelo à justiça popular.
Nunca fiquei convencido disso. Como hoje se comprova, com a violência que nos entra em casa em todos os telejornais. A repetição da dose anestesia. E diz-se: olha, mais um assassinato, mais um atentado, como se se tratasse de objectos, não de pessoas.
Creio que os jornalistas que não se preocupem apenas com o sensacionalismo têm aqui larga matéria para reflexão.
E nós todos.
A sua reflexão foi magnífica.

jotaC disse...

Cara Dra.Suzana Toscano.
Já nos habituou a bons textos e este é mais um deles.
Permita-me que destaque o seguinte:

“…O papel do fotojornalista não é o de um mero observador atento mas o de um mensageiro que não deixa incólume o que retrata. Compõe, avalia e fixa, tal como escolheu mostrar...”

Ocorre-me reflectir: ao não deixar incólume o que retrata não estará o fotojornalista a ser invasivo?

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Tenho dificuldade em saber onde é que está o ponto de equilíbrio. Como fazer para apelar à sensibilidade e combater a indiferença perante as atrocidades e os horrores cometidos por homens contra outros homens ou perante a devastação da fúria da natureza?
Como fazer para não banalizar esses sentimentos? Será que os homens vítimas de massacres e guerras, da fome e do abandono merecem a banalização do seu sofrimento?
O fotojornalismo tem aqui um papel importante ao desmascarar e denunciar a prepotência, a maldade, a injustiça, o absurdo. Mas vivendo da desgraça alheia é legítimo perguntar se tem o direito de ir tão longe. Se tem o direito de "alimentar" sofrimento para a fotografia.
Enfim, são questões de dimensão ética e humana que não encontram uma resposta única. São questões que dão muito que pensar…
Obrigada Suzana por nos trazer a sua reflexão!

Suzana Toscano disse...

Sem dúvida que o fotojornalismo é uma arma poderosa e de muito mérito na informação, para ilustrar as notícias, e na divulgação impressiva dos acontecimentos, dando-lhes uma dimensão e um realismo que poupam a intervenção da imaginação de quem as recebe. Quando surgiram, e quando a crescente sofisticação das máquinas permitiu um realismo crescente, o impacto era tremendo. Para "valer" uma foto daquelas no jornal tal e tal, é porque era mesmo uma coisa impressionante. A questão e´que foi sendo cada vez mais fácil chegar aos sítios, a todos os sítios, com todas as máquinas e com muitas pessoas. E o excesso tornou isto quase insuportável, por isso não é de admirar que haja menos interesse dos jornais por estas fotografias, já não são marca de distinção, já não são "especiais", salvo, claro algumas excepções que têm mais que ver com os acontecimentos do que com as fotografias em si. Elas eram, muitas vezes e por si só, a notícia...