Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

“Apenas companhia”...

Hoje, foi noticiado que o governo regional da Andaluzia vai legislar no sentido de “penalizar os médicos que insistam em tratamentos fúteis”. A chamada “Lei da Morte Digna” é pioneira e, aparentemente, vai de encontro a uma realidade em que certos médicos caiem ao ponto de prolongar uma existência sem o mínimo de qualidade e atentatório da dignidade humana, situação designada por “obstinação terapêutica”. O crescente desenvolvimento das tecnologias leva a situações deste jaez.
Há muitos anos, ainda era estudante, li que o prémio Nobel da Medicina de 1960, o australiano Sir Macfarlane Burnet, trazia um cartão na sua carteira pedindo para não ser sujeito a medidas de ressuscitação se as mesmas pudessem por em causa a sua condição de ser humano. Morrer sim, mas com dignidade! Nunca mais me esqueci deste “pequeno pormenor” que me marcou muito. Mal sabia Macfarlane o desenvolvimento alcançado pela medicina nos dias actuais.
Não consigo aceitar que se prolongue a existência de uma pessoa à custa de terapêuticas obstinadas. Pessoalmente sou um “macfarlaniano” convicto. Tenho o direito a morrer sem ser objecto de um “encarniçamento terapêutico” como apelida o padre Feytor Pinto. E fico satisfeito pela posição da Igreja Católica ao afirmar que as “pessoas devem assumir a morte como coisa natural”. Curiosamente, ao longo da história humana a posição face à morte sofreu muitas alterações. Houve tempos em que era perfeitamente natural e aceite. Mas a evolução social transformou-a de tal forma ao ponto de hoje termos de a esconder ou de a recusar a todo o transe.
Compete aos cidadãos explicitar directa ou indirectamente a sua vontade no caso de caírem em situações complexas que possam envolver actividades “excessivas”. É totalmente diferente da penalização que pretendem impor aos médicos pela prática de “obstinação terapêutica”. Foi dito que é uma forma de poupar dinheiro. É provável que seja, porque existem estudos que provam que nas últimas semanas da nossa existência gastamos balúrdios.
O respeito pela vida e pela morte deve estar sempre presente quando nos confrontamos com situações delicadas.
Presumo que as disposições legais que começam a ser produzidas sejam reflexos de uma falta de um normal relacionamento e aceitação da morte.
Desde muito novo que lido com a morte. Recordo de ser “empurrado” a vê-la e a acompanhá-la. Crianças da minha idade morreram e eu vi-as e fiquei a seu lado. Comecei aos cinco anos quando morreu a minha amiga de brincadeira com garrotilho. Ainda hoje recordo a sua imagem. Uma cor fria, amarelada, que nunca tinha observado em ninguém e um buraco na garganta meio ensanguentado. Toquei as suas mãos. Estavam frias. Ainda a abanei para ver se acordava. Sentei-me ao seu lado. Depois, ao longo da vida...
Confesso que cheguei a sentir uma tranquilidade muito difícil de explicar quando doentes, em fase terminal, davam o último suspiro. Sozinhos, eu e o doente. O que é que fazia? Nada. Apenas companhia...

8 comentários:

Suzana Toscano disse...

Caro Prof. Massano Cardoso também eu considero que as pessoas, nós, temos direito a uma morte digna, e que cada vez lidamos pior com a morte. Tudo à nossa volta impele à orgia da vida, ao prazer, à beleza, à perfeição, à superação das dificuldades, ao êxito, à glória, até ao individualismo egoísta como justificação para tratarmos os outros com menos respeito e decência. Não só na vida social mas também na vida pessoal, as acusações à falta disto ou daquilo que nos deveria ter sido proporcionado só porque nascemos servem para dispensar o esforço e o sentimento de dever. No meio disto tudo, a morte é uma afronta, algo que recusamos e que nos devem tirar da frente em qualquer circunstância. Não aceitamos o sofrimento da partida definitiva dos que amamos nem eles querem aceitar que os abandonamos ao deixá-los morrer. A morte isola quem vai e quem assiste, mete-se no meio e é uma insuportável solidão. É duro que a morte nos apanhe cada vez mais impreparados para ela, graças também, e sobretudo, aos espantosos avanços da ciência e da qualidade de vida que nos protege das doenças que há poucas décadas se encarregavam de nos por em contacto com a morte muito cedo, como lembra no seu magnifico post.
Talvez por isso, porque a natureza anda com as voltas trocadas pela ciência, procura-se pela lei estabelecer onde é que esta acaba e aquela pode enfim fazer o seu trabalho. Onde acaba o direito de viver e começa o direito de morrer? É uma fronteira que, receio bem, lei nenhuma seja capaz de definir com precisão. Chamar Lei da Morte Digna ou Lei da Eutanásia é apenas uma questão de beleza literária, não vejo como possa haver grandes diferenças. Excepto se, como me pareceu, se desloque a questão do direito da pessoa querer morrer em paz, para o campo do dever do médico apreciar com sensatez e humanidade a sua intervenção. Ora, este caminho, ainda que com um nome mais bonito, parece-me muito cínico e perigoso, porque na verdade os dois devem ser indissociáveis. Um médico vai pagar pesadas multas por ter insistido em manter vivo um doente? E quem é que mede essa razoabilidade? A família, os amigos, outros médicos? Uma coisa é o direito da pessoa, pode ser discutido até ao infinito, mas eu concordo com isso, que uma pessoa tenha o direito de pedir que a ajudem a morrer. Mas pôr isso como uma obrigação do médico? O dever profissional de avaliar, objectivamente, quando é que é dignidade para uns e não é para outros? Há um momento, nem que seja o da morte, em que temos que confiar inteiramente na decisão clínica, se recusarmos a decisão à pessoa. E, das duas uma, ou o médico viola as leis da sua profissão, e deve ser punido por isso, ou age de acordo com elas e não é um qualquer juízo de “grau de dignidade” ou de montantes de multas que vai resolver o problema.
Eutanásia ou Direito à Morte Digna, qual delas é mais perigosa? Por mim, prefiro que se dê às coisas o nome que elas têm, ou então abra-se lugar a mais humanidade e a menos lei e castigo. Ao equilíbrio entre os meios técnicos e a capacidade humana de olhar as coisas.
Não sei se me expliquei bem, prefiro que se discuta a eutanásia, com coragem e a lucidez possível, do que se comecem a inventar eufemismos politicamente correctos que ainda tornam as pessoas menos donas dos direitos que fingem reconhecer.
Apenas companhia, sim, mas a partir de que momento?

Massano Cardoso disse...

A partir de que momento?
Só se sabe, e só se "sente", nesse preciso "momento"!
Não é fácil explicar. Em primeiro lugar, aplica-se os critérios científicos, mas estes só se tornam "válidos" quando sentimos que é o melhor para o doente e para nós, para a nossa consciência...

Anónimo disse...

Caro professor, excelente escrito sobre as questões da morte. Apreciei muito, muito le-lo. Por motivos e interesses diversos ligados a questões espirituais - e não tão espirituais - tenho a questão da morte muito bem resolvida em mim. A minha e a dos outros. Não a temo. Evidentemente não quero morrer agora dado ainda ter imensas coisas que fazer mas se acontecer, paciência. Da mesma forma a morte dos outros não me incomoda particularmente. Posso sentir pena, lamentar não poder voltar a estar com a pessoa, mas não me causa um sofrimento por aí além.

Tenho medo, sim, e muito!, de ficar inválido, um vegetal, algo desse género. E, por corolário, muito medo que algum dia me suceda algum desastre, eu acabe num hospital e, para não me deixarem morrer, transformem o meu corpo numa versão humana do antigo PBX - sim, aquele dos telefones -, com um sem fim de fios, tubos, agulhas e sabe-se lá mais o quê a entrar e sair de todos os meus orificios e mais uns quantos abertos na pele especificamente para o efeito. Isto sim, temo. E lamento muito não haver a possibilidade dum cidadão registar-se numa base de dados para impedir que estas coisas aconteçam, que sejam usados tratamentos que sim, podem prolongar a vida, mas artificialmente, ligado a máquinas e aparelhos que respiram, purificam o sangue, fazem bater o coração, enfim. Isto, sobretudo depois de dois casos - em Itália e França se a memória ainda funciona em devida regra - em que tribunais disseram que os médicos podiam desligar a alimentação dos doentes.

Em suma, não temo a morte. Mas temo o sofrimento antes dela e temo uma vida vegetal.

Pedro disse...

Caro Massana Cardoso,

O ponto que foca tornar-se-á cada vez mais visível sob a pressão financeira dos SNSs.

Chocaram-me dois exemplos da velha Albion:

- A morte do fundador de uma editora de discos, com cancro do rim. Acho o que o homem vendou tudo o que tinha (casa etc) até se esgotar a massa e não poder continuar o tratamento...

- Um colega meu que vive na mesma terra contou-me que aparentemente quando os velhotes têm uma doença demasiado "cara" não são tratados pelo SNS por "não compensar"...

Cumprimentos,
Paulo
PS: Este derreter da fortuna pessoal para tratar de uma doença terminal dava mesmo para uma comédia. A descendência em pânico aconselhando o pobre ancião das vantagens da morte natural, para ficar com a herança, é claro :]

Adriano Volframista disse...

Caro Prof Massano Cardoso

Retomo um tema que "dialogámos", em momentos passados, relativamente ao aborto.
A questão é a mesma:
quando nascemos, quando morremos e o papel da tecnologia no processo.
Ambos os momentos estão ligados e as sociedades ao optarem por uma, neste caso o aborto e o alargamento do prazo legal para o realizar, irão modificar o momento da morte, normalmente adiantando-o.
A tecnologia vem complicar o que antes, era fácil: nascíamos quando saíamos do ventre, e morríamos quando deixávamos de respirar; a tecnologia veio obrigar a pensar e repensar sobre o assunto.
O que ilustra é tangencial e só responde, parcialmente, à questão ética.
Por isso vamos complicar para reflectir:
Na Califórnia uma jovem delinquente foi atingida, durante um assalto por um disparo, ficando em coma. Estava grávida de cinco meses e levantou-se a questão de saber se se levava a gravidez até ao final ou não. A morte da mãe seria inevitável desligando os sistemas de suporte de vida.
Na Alemanha uma jovem sofreu um acidente de viação ficando em coma, estava grávida, colocou-se a questão de manter ou não até à conclusão do período de gravidez.
No primeiro caso o tribunal californiano decidiu contra o desligar dos sistemas, ao passo que o alemã decidiu a favor.
Ambos os casos são reais e ambas as sentenças foram diferentes na sua conclusão. Faço notar que estamos perante sistemas jurídicos diferentes, mas com pressupostos morais e éticos comuns.
Os argumentos que fundamentaram a sentença, são, ainda, irrelevantes; quer-me explicar onde está o momento preciso da "boa morte" e do nascimento?

Cumprimentos
João

Massano Cardoso disse...

A análise dicotómica dos problemas é falsa e reducionista, e cómoda para alguns, sobretudo para os que não têm dúvidas. É preciso fazer a avaliação num continuum que pressupõe que o tal "ponto" ande "para um lado e para o outro", ao longo de uma estranha semirecta, de acordo com o tempo, com o lugar, com a cultura e com os protagonistas.

Adriano Volframista disse...

Prof Massano Cardoso

Pessoalmente tenho muitas dúvidas, senão as tivesse não me interrogava sobre este, importantissimo, assunto.
Nem redução, nem alternativa, porque:
a) Onde termina a acção/efeitos da tecnologia;
b) Quem define e porque princípios somos guiados para determinar os limites da tecnologia;
c) Quando nascemos ou quando morremos?
e) Não estaremos a realizar o compromisso faustiano, brincando aos deuses?
Cumprimentos
João

Massano Cardoso disse...

Caro João.
Eu não disse que não tinha dúvidas. Por isso é que o tal "pontinho" anda, nervosamente, de um lado para outro!
Concordo consigo quando diz que "estamos a brincar aos deuses". Até vou mais longe: "Não será que queremos ser mesmo deuses"?
Cumprimentos