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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Velhos são os trapos

Sempre tive na minha família pessoas de muita idade, mais de 80 anos, todos os avós, vários tios e tias e, como convivíamos muito com eles, habituei-me não só a gostar de os ouvir falar longamente das suas vidas mas também a apreciar o modo como avaliavam os acontecimentos que iam ocorrendo ao longo dos anos. Conviver com pessoas de idade é uma forma de aprender a ver o mundo com outros olhos, a evitar juízos de valor definitivos e, sobretudo, a duvidar dos que dizem que só a nós é nos acontecem as coisas, azares ou sortes, êxitos ou desgraças. É uma pena desperdiçarmos com tanta ligeireza o muito que estas pessoas nos podem ensinar, em troca de um pouco de atenção.
Um dos meus tios, que tem agora 91 anos, foi médico cirurgião e viveu sempre com um entusiasmo extraordinário a sua profissão. Sempre me lembro de como ele falava das novas descobertas, da sua sofreguidão de saber, da quantidade de revistas que lia e das viagens que fazia para aprender com outros médicos e noutros hospitais o que por lá se passava. Foi sempre o médico da família toda e muitos lhe deveram mais anos de vida ou o atenuar de muitos sofrimentos. Deixou de operar muito antes de deixar a clínica, não fosse falhar a absoluta firmeza de mãos, mas manteve-se a dar consultas até aos 80 anos.
No entanto, ainda hoje é ele que nos dá as novidades da medicina, não perde um programa de televisão sobre os avanços da ciência e aproveita sempre para comparar como são hoje as condições de exercício clínico com as de que dispunha há décadas atrás, casos terríveis que hoje seriam banais, como acontece com as úlceras do estômago, contou ele hoje, cuja origem foi desconhecida durante muito tempo e que tornavam a vida dos doentes um suplício e uma angústia permanentes.
Hoje, no passeio que demos todo o dia, não se cansava de falar na descoberta que o pasmou, a criação artificial do genoma humano, uma descoberta impossível, uma coisa inimaginável, dizia ele, já viste as possibilidades que isto abre, é claro que vai trazer outros problemas, a ética tem que ser uma constante, não pode haver medicina sem ética, como é que o mundo vai saber lidar com isto? Mas é fantástico, fantástico, dizia ele, maravilhado como um jovem, grato por ainda poder assistir a tais prodígios.
No turbilhão da sua fantástica memória, contou como todas as novidades criam resistências e dúvidas e lembrou o episódio que se passou com ele quando, jovem médico apaixonado pela gastrenterologia depois de um estágio na América, propôs que se criasse em Portugal essa especialidade, que na altura era tratada pelos clínicos gerais. Contou que expôs a sua ideia frontalmente a um grupo de clínicos mais velhos e que pensou que a sua tese ia ser bem recebida, vinha cheio de fôlego com o que aprendera e parecia-lhe que seria um avanço enorme se a especialidade fosse criada, não duvidava do êxito do que propunha. No fim, um professor muito mais velho levantou-se, irado, e apontou-lhe um dedo acusador:
- “ Gastrentrujice, é o que isso tudo é, grastrentrujices é o que o senhor andou a aprender, para que é preciso essa especialidade, há muito mais a fazer!
É claro que mais tarde a especialidade foi criada e ele foi dos primeiros cirurgiões a inscrever-se, e dentro dessa outras especializações foram chegando, numa evolução científica muito rápida, um médico que pare de estudar em poucos tempo fica na pré história, insistia ele. Depois parou um pouco e, como se falasse para si próprio, acrescentou: -“Eu só podia ter sido médico, não tinha valido a pena a vida se tivesse sido outra coisa qualquer. Fui sempre um apaixonado da medicina, e ainda sou, vê lá tu agora esta descoberta de um tal Venter, um americano, criar vida artificial, inimaginável, e eu a ver isto tudo…”
Velho, o meu tio, com 91 anos? Velhos são os trapos.

4 comentários:

Bartolomeu disse...

Este é, em definitivo, o drama da vida de cada um: o qual fará sentido, se na alma de cada um existir um porquê e um para quê.
Todos nós nascemos com uma tarefa atribuída; construír um puzzle numa limitada quantidade de tempo.
Chamemos-lhe o "puzzle da nossa existência".
Essa quantidade de tempo que dispomos, constitui o grande mistério e desafio de cada ser humano.
Mistério esse de que temos a precepção mas de que poucos têm consciência.

Bartolomeu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
jotaC disse...

Assim, sim!. Chegar aos 91 com essa jovialidade e vitalidade faz sentido...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
É um privilégio convivermos com pessoas de idade, justamente pelas razões que apontou. E quando estão lúcidas é um enorme prazer.
Aprende-se muitíssimo, em especial a melhor compreender a vida, com as suas próprias histórias de vida, cheias de aventuras e desventuras.
É por isso que perdemos muito, cada um de nós e o colectivo, quando abandonamos as pessoas de idade. Fazemos-lhes muito mal e nós não ficamos melhor. Falta ainda muita consciência para que a sociedade altere o modo como hoje trata estas pessoas. E vai ter que mudar porque o envelhecimento veio para ficar.