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domingo, 27 de junho de 2010

Sobrescrito

Sábado. Manhã de rituais. Entro na pequena papelaria, escolhos dois jornais, o diário e o semanário, e coloco-me junto ao balcão para os pagar. Tive de aguardar, porque uma senhora, que devia ter ultrapassado os setenta anos, de aspeto fino, voz suave e delicada, demonstrando tiques diplomáticos e olhares a desafiar a cultura, estava prestes a pagar as suas aquisições, quando perguntou à menina: - Desculpe, tem sobrescritos com janela? Ao ouvir a palavra sobrescrito dei um salto de meio século no tempo. Vi-me subitamente de calções, no largo da Estação, ao princípio de uma quente noite de verão em que o cheiro da tília se fazia sentir com intensa atividade. Férias grandes, as desejadas, em que os petizes se sentiam livres das agruras e violências escolares. Durante mais de três meses gozávamos uma liberdade única, em que conseguíamos evitar a menina-de-cinco-olhos, as canas da índia, as humilhações e os insultos, os bicos dos sapatos e as mãos papudas dos educadores. Um período em que, apesar das muitas asneiras que fazíamos, os castigos familiares não tinham, nem de perto, nem de longe, uma carga negativa característica das “prendinhas” dos professores que, de forma contínua e reiterada, se vangloriavam das suas façanhas. Se fosse hoje, e por muito menos, alguns já estariam atrás das grades de uma prisão. Mas não, na altura eram o máximo da pedagogia e nós é que pagávamos.
O cheiro a tília, o calor e a liberdade de prolongar até mais tarde a ida para casa eram regalias que não posso esquecer. Ao ouvir “sobrescrito”, vi-me nessa noite frente ao estabelecimento do Zé do Café. Como era verão, o altar televisivo, que na altura atraia pequenas multidões de fiéis, era deslocado para o exterior, onde, num pequeno pátio, as pessoas se sentavam como se estivessem no cinema ao ar livre.
Gostava de ver televisão debaixo do céu estrelado, saboreando a brisa da noite e o perfume das tílias. Nessa noite, a noite do “sobrescrito”, parei com a minha bola debaixo do braço e fiquei preso à figura do padre Raul Machado e as suas Charlas Linguísticas. Apesar da minha idade, já compreendia algumas coisas que o senhor, com uma voz grave e forte, ia explanando, socorrendo-se de um quadro preto igual ao da minha escola onde deslizava o giz. Explicava o senhor que a forma correta não era envelope, mas sim sobrescrito. Envelope vinha dos franceses e nós já tínhamos uma palavra. Chegou, inclusive, a mostrar um papel escrito e depois fechou-o dando-lhe o formato de carta, como nós conhecemos, e escrever o endereço sobre o “escrito”, daí sobrescrito. Posteriormente individualizou-se a fim de colocar dentro o escrito. Interessante. A partir dessa altura quando me mandavam ir ao senhor Costa buscar papel de carta e um envelope, eu entrava e dizia – Por favor, queria um papel de carta e um sobrescrito.
Estas recordações surgiram à velocidade da luz e foram interrompidas quando a menina, sorridente, pediu à senhora: - Desculpe, será que a senhora podia explicar-se melhor? A senhora, apanhada de surpresa, tentou encontrar um sinónimo, mas balbuciava sem lhe sair nada, até que, educadamente, intervim explicando à menina da papelaria: - A senhora quer um envelope. Dois ahs, um de surpresa, a da menina, e o outro de alívio da senhora. Disse que em termos linguísticos ambas as formas podem ser usadas, mas, de facto, a mais correta era sobrescrito. A senhora de idade agradeceu e comentou algumas dificuldades que sente em fazer-se entender, talvez por ter estado fora muito tempo e a incompreensão como são tratados os tempos do conjuntivo, esboçando um discretíssimo sorriso. Foi a minha vez de pagar. Entreguei uma nota de cinco euros e deveria receber cinquenta e cinco cêntimos, mas deu-me apenas cinco. Fiquei na dúvida se trataria de um erro de cálculo mental ou um inesperado aumento, mas, para não causar qualquer embaraço, saí, verificando que não tinha havido agravamento do preço. Restou o sorriso e a frescura da menina e as recordações que me fez viver graças ao seu desconhecimento sobre o significado de sobrescrito. Valeu bem os cinquenta cêntimos de prejuízo...

6 comentários:

Fartinho da Silva disse...

Caro Salvador Massano Cardoso,

Esta sua história é reveladora da diferença abissal daquilo que os mais pais aprendiam na escola e aquilo que aprenderiam, hoje, os meus filhos se frequentassem o mesmo espaço escolar...

Só não vê isto quem não quer ver!
Só não percebe que assim não há solução para a nossa falta de produtividade e competitividade quem não quer perceber e parece que há uma mole enorme de gente que não quer ver e muito menos perceber...

Anónimo disse...

Caro professor, que curioso a menina da papelaria não saber o que é um sobrescrito.

Pessoalmente cultivo e uso algumas expressões antigas. Acho-lhes charme e gostaria que não se perdessem. Olharem para mim embasbacados por pedir um sobrescrito nunca aconteceu. Mas já quando falo em carros de praça...

Freire de Andrade disse...

O seu postal, em jeito de A la Recherche du Temps Perdu, também me fez recuar no tempo: primeiro fez-me ver a sorte que tive em ter uma professora que era contra os castigos corporais, donde não ter sentido as agruras e violências escolares; depois, anos mais tarde, quando já havia TV, gostava de seguir as Charlas Linguísticas e ia ao café, já que não tinha receptor em casa. Quanto à palavra sobrescrito, é a que costumo usar em vez do galicismo envelope. Sinais da idade.

Catarina disse...

Num post apenas, o caro Prof. presenteia-nos com uma situação reveladora de, pelo menos, três realidades : a dificuldade de cálculo mental de alguns jovens de hoje (talvez devido a uma deficiência na área da educação, assumindo que a menina soridente e fresca não seja detentora de alguma deficiência na aprendizagem), a evolução da língua portuguesa e uma senhora de “uma certa idade” que talvez tivesse estagnado no tempo e não tenha acompanhado as alterações semânticas. Esta é uma das razões que sempre gostei de conviver com jovens! Não quero parar no tempo de forma nenhuma! : )

Catarina disse...

Esta tendência que eu tenho de culpabilizar, indirectamente, o ensino, por causa de um pequenino erro no troco!!! A menina provavelmente é uma barra em matemática e o que aconteceu é que ficou um pouco distraída com o charme do caro Prof. : )

Suzana Toscano disse...

Quanto ao troco, concordo com a Catarina, a menina deve ter ficado distraída, ou então foi uma tentiva para que o Prof. voltasse lá para acertar as contas ;)Quanto à linguagem, há tempos fui a uma papelaria e pedi "fita gomada", era assim que se chamava a hoje fita-cola e foi esse o termo com que em casa sempre se identificou o produto.Claro que a menina que me atendeu disse logo que não tinha, nem sabia onde se podia comprar tal coisa. A sorte foi que estava um monte delas mesmo à frente do balcão, peguei numa e disse "é isto" e ela a olhar para mim muito desconfiada, a dizer que aquilo era fita cola. Enfim, temos que começar a encarar o gap geracional...