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sábado, 10 de julho de 2010

Sakineh Mohammadi Ashtiani

Uma tarde idêntica a tantas outras, só que desta vez, o céu, despido de nuvens, estremecia com um sol raivoso que - mais parecendo ter acabado de sair do inferno -, não conseguia ocultar o gozo, por antecipação, da cena de apedrejamento. A fêmea pecadora, sentada sobre uma das pernas, encurvava-se lentamente, na esperança de conseguir reduzir a superfície de exposição do seu corpo às inúmeras pedras, angulosas e douradas, cinicamente dispostas num círculo, ao seu redor. Em breve iriam rasgar-lhe a carne e partir os ossos. Estranhamente, a imagem da mulher era sempre a mesma, fosse qual fosse a posição dos montes de pedra sem sombra, não se conseguindo descortinar a face, oculta pelo manto negro.
Os justiceiros, corja inebriada com a expectativa da lapidação do corpo feminino, revelavam olhos vidrados e vazios de piedade. Uma esbranquiçada espuma de prazer começava a surgir nos cantos de lábios rígidos e sardónicos. Mais afastado, sentado nas areias quentes, e indiferente ao calor daquele sol infernal, o homem escrevia, silenciosamente, na areia com um pequeno ramo ressequido, até que perguntou qual a razão da execução. Disseram-lhe. Ouviu, e após alguns segundos de silêncio, continuando sempre a escrever, rematou: - Quem não tiver pecados atire a primeira pedra. Entreolharam-se, os olhos arrefeceram, a espuma secou, os lábios penderam, acabando por largar, sem dizer nada, as pedras angulosas e douradas nas areias, e sem vislumbrar sombras, nem das pedras, nem as suas. As palavras escritas na areia foram alisadas, não conseguindo lê-las. Mas mesmo que as vissem, os seus olhos, cegos de ódio, não as entenderiam.
O que diziam aquelas frases escritas debaixo de um sol abrasador? que, arrependido do seu despertar demoníaco, depressa retomou à sua ordem natural, fonte de vida, semeando sombras.
Não muito longe, atrás de uma pequena colina, alguém presenciava a cena desesperado com o advir da execução. Quando se libertou da angústia do pesadelo sem sombra, desenhado à sua frente, verificou que tinha conseguido fixar, embora sem perceber, os sinais escritos na areia. Fixou-os, mas a atenção estava presa à mulher condenada e que agora seria libertada. O momento de prazer que sentiu contrastava com o sofrimento prévio, mas, após alguns momentos, as imagens das palavras começaram a fazer algum sentido e a querer roubar-lhe a tranquilidade da alegria. Viu que tinha sido observado, mas apenas por quem tinha olhos. Num relance, os seus olhares cruzaram-se enigmaticamente, acabando por ser premiado com um sorriso, ao mesmo tempo meio cúmplice e meio triste, como se tivessem assinado um pacto eterno quanto ao significado daquelas frases. Passou à sua frente, num passo vagaroso e firme, até se aproximar da ex-condenada e, de mãos dadas, abandonaram o local, tranquilos, sob a sombra dos olhos da justiça.
Acordou meio sobressaltado. A sensação de um frio matinal, inesperado para a época, fê-lo estremecer. Mas não, afinal, o frio vinha do interior. Foi o sonho que lhe roubou o seu calor para alimentar o sol, escaldando as areias do deserto. Ainda conseguiu ver as linhas desenhadas na areia, mas esfumaram-se repentinamente, impedindo-o de as ler. Esforçou-se por as desenhar mentalmente, mas não conseguiu. Uma sensação de incómodo invadiu-o provocando-lhe medo e angústia. Mais um acordar traduzido no eterno sentimento que o persegue desde que começou a ter lembranças da sua existência: a injustiça. Apetecia-lhe refugiar na loucura, uma forma de morte em vida, capaz, quem sabe, de lhe permitir desfrutar algumas emoções na sua verdadeira pureza.
Leu as notícias. Já não vão matá-la por apedrejamento, decidiram enforcá-la. Corja de bandidos.

6 comentários:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Gostava de ter escrito o seu texto. Não fui capaz. Ontem quando li a notícia inclinaram-se-me os olhos, fiquei paralisada e vi o horror. Vários horrores!
Sakineh Mahammadi Ashtiani vai ser enforcada às mãos dos mesmos que a matariam à pedrada. Não há perdão para esta barbárie. Não há palavras para imaginar o seu sofrimento.

Anónimo disse...

Caro Professor, já lá vão uns anos, 8 ou 9, estava eu em Jeddah, Arábia Saudita. Ia haver nesse dia uma execução por apedrejamento e dois cavalheiros, belgas, que estavam no mesmo hotel que eu e com quem costumava confraternizar, aproximam-se do grupo em que eu estava, no átrio do hotel, dizendo que ia haver a tal execução, que eles queriam ir ver para ficar com uma impressão cultural de como é, como se faz, o que acontece, etc, etc. Ninguém mais acedeu a ir com eles. Já era o bastante sabermos que se fazia mas ver, pelo menos para mim, era algo muito superior ao que o meu estômago pode aguentar. Os dois belgas foram. Um bocado depois aparecem de volta aquelas duas pobres almas, horrorizados, totalmente avariados da cabeça. Tiveram que ser repatriados nessa mesma noite e substituídos de urgência. Ficaram totalmente incapazes para o trabalho.

Acho um costume bárbaro, pavoroso, horrivel, demente. E, para que conste, não é a pior forma de execução segundo os preceitos corânicos. Mas não esqueço que o islão está num estágio social muito atrasado, muito diferente daquele em que nós estamos. Poder-se-ia abolir a execução por apedrejamento, agora, já, da noite para o dia e em resposta a pressões ocidentais? Duvido. Do conhecimento que tenho da forma como as sociedades islâmicas funcionam (casos do Irão e até mais fortemente da Arábia Saudita) seria um pilar da sua civilização que ruiria. Ainda por cima que ruiria devido a pressões externas. Acho o costume algo horrivel? Sim, acho. Julgo aqueles que o aplicam e praticam no seio duma determinada cultura e contexto e dentro da área geográfica em que essa cultura e contexto são a forma de vida? Não. Para o fazer teria que fazer um julgamento de valor sobre essa cultura e o modo como essa sociedade funciona, de fio a pavio. E isso não faço. Como preferiria que os fundamentalistas islâmicos o não fizessem em relação ao nosso modus vivendi.

Massano Cardoso disse...

Caro Zuricher. Em 13 de Setembro de 2008, a propósito de uma crónica, “Enterradas vivas”, sobre o caso da nigeriana Amina Lawah, o meu amigo tinha feito uma intervenção sobre o assunto, revelando alguma experiência em países árabes, cujo conteúdo pode ser lido em http://quartarepublica.blogspot.com/2008/09/enterradas-vivas.html#comments. Na altura, manifestou a sua discordância perante esta forma de execução, não deixando de a enquadrar dentro da cultura islamita. Compreendo-o, embora não possa deixar de afirmar que, seja qual for a cultura, não é a mesma que está em causa, mas sim determinadas práticas que atentam contra a dignidade humana. Na Índia certas práticas “culturais” inumanas também foram abolidas e criminalizadas! E quem diz Índia diz outros povos. Não é permissível tentar escamotear estes assuntos enquadrando-os apenas na cultura. Quanto aos fundamentalistas árabes não são mais do que verdadeiros psicopatas, existem em toda a parte, só que para aquelas bandas existe uma “psicopatia religiosa organizada” semioficial. Não se pode, nem devemos esperar, que o Islão se modifique por dentro e lentamente nestas matérias. Muitos povos já aboliram a pena de morte e aqueles que ainda não o fizeram terão de o fazer um dia destes. Mas além da pena de morte, a forma de execução e os crimes sujeitos a tal prática são mais do que condenáveis, são manifestações execráveis da conduta humana e não é por isso que tenho menos apreço e respeito pela cultura islâmica, mas, estou convicto que, dentro dos que vivem nesta cultura e a perfilham, haverá imensas pessoas que partilharão da minha opinião. Se lhes fossem dada oportunidade seriam os primeiros a condenar tais práticas e nem por isso abdicariam dos princípios da sua cultura, que se caracterizou durante muito tempo por uma tolerância que outras culturas, nomeadamente a nossa, não foram capazes de manifestar. O nosso ocidente cristão também se divertiu com a assadura lenta de pobres vítimas, em nome de Deus.
Corja de bandidos que pretensiosamente se consideram como justiceiros.

Anónimo disse...

Caro Professor, muito obrigado por ter avivado a minha memória. Já não me recordava desse post e dos comentários que se lhe seguiram. Reli-os e realmente o que eu poderia dizer em respeito a este caso seria ipsis verbis o que disse há quase dois anos.

Massano Cardoso disse...

Zuricher

Curiosamente ou não, eu já estava à espera.
Um abraço

Bartolomeu disse...

O mais agonizante nesta estória, é constatar-se que o povo Iraniano, regrediu em costumes e leis, à idade da pedra.
Assim, torna-se difícil a coexistência.
Se milagres ainda se operassem nesta época, no dia da lapidação, todas as pedras se transformariam em algodão... pela força da vontade mundial.