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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Doce paganismo

Depois de uma tarde de trabalho, presidir à assembleia municipal, regressei a casa meio cansado, mas satisfeito. A sessão foi animada, politicamente um pouco quente, o que me agradou sobremaneira, mas com correção.

Olho para as portas da minha casa e vejo-as enfeitadas com ramos de giestas, maias. Não foi por nada, pensei logo na minha vizinha, a Maria, pessoa simples, mais nova do que eu, e que sabe cultivar a cultura popular como ninguém. Uma surpresa que me agradou imenso e que me fez recordar outras vésperas do primeiro de maio, quando ia cortar giestas com o resto da miudagem, assim que saíamos das aulas, para depois as distribuir pelos vizinhos, enfeitando as ruas com aquele doce amarelo. Uma festa. Verdadeiros pedaços de sol pendurados nas ombreiras das portas, nas janelas, nos vasos, nas varandas a alegrarem a vida da comunidade, esconjurando os maus espíritos e afastando a fome. Quem não tivesse maias à entrada das casas corria o risco de vir a sofrer fome, como se já não sofresse da dita. Ouvia as explicações dos mais velhos sobre o significado da colocação das giestas, mas não lhes dava grande importância, o que eu gostava era de as ver penduradas e saber que afastava a fome.

Uma festa pagã que se arrasta desde a noite dos tempos, anunciando a fertilização das terras e o papel do sol, culto celta mais ou menos cristianizado, a preceder a festa da Santa Cruz e as romarias que ainda hoje se fazem em sua honra, em locais onde em tempos se prestava culto ao sol. Recordo-me de que nesta época o sol começava a ter um calor diferente e permitia, com a sua luz de cor das maias, brincar até mais tarde.

Hoje, houve alguém que se lembrou de mim, uma mulher analfabeta que vive, ainda, ao ritmo da natureza.

Ao entrar em casa, perguntei, foi a Maria que colocou as maias à porta, não foi? Riu-se, claro, quem mais poderia ser, fê-lo para nos proteger dos maus espíritos e para que a abundância entre e não nos falte nada. Um desejo sentido, não tenho dúvida, uma generosidade sem limites, materializada em belos ramos de giestas amarelas. Doce paganismo a merecer a melhor das atenções. Ainda há gente a acreditar nestes rituais, sinal de que têm esperança em esconjurar tragédias e evitar que a fome entre nas casas.

À falta de melhor, fui “cortar” este ramo virtual de maias. Agora, mimetizando o meu comportamento juvenil, gostaria de o colocar nas portas de todos os “vizinhos” que vêm a este espaço.

Se me permitem, aceitem-no com votos de um belo primeiro de maio, e que a abundância e a alegria enchem as vossas casas.

Para ajudar à reflexão proposta no post anterior

(clique no quadro para melhor visualização)

Este quadro representa a distribuição do crédito bancário entre 2004 e 2008 pelos diferentes setores da atividade económica nacional. Ajuda a compreender aquilo que está em causa no assunto abordado no post da Margarida Corrêa de Aguiar num plano que se situa aquém do Direito.

domingo, 29 de abril de 2012

A reflexão prossegue...

Há umas semanas atrás trouxe aqui ao 4R um texto sobre a necessidade de criar um regime excepcional de regularização de dívidas aos bancos no âmbito dos contratos de crédito à habitação.
São graves as consequências sociais do acelerado crescimento dos incumprimentos no crédito à habitação. Trata-se efectivamente de uma matéria crítica que não tem fácil resolução, mas que impõe uma intervenção política capaz de criar o justo equilíbrio entre a protecção das famílias em situação vulnerável e os interesses dos bancos, ou seja, capaz de fazer uma redefinição e redistribuição dos riscos e custos em presença.  
Esta semana foi conhecida uma sentença inovadora em que um juiz de Portalegre considerou que "há um enriquecimento injustificado" por parte dos bancos quando, após a entrega da casa ao banco (dação em pagamento), as instituições de crédito avaliam e adquirem a casa abaixo do valor dessa avaliação, exigindo, como contrapartida, a diferença entre o valor da avaliação e a venda ao próprio banco pelo preço estipulado por estes últimos.
Dito de outro modo: até aqui, quem pede um empréstimo e falha as suas obrigações era obrigado a pagar ao banco a diferença entre o valor da avaliação e o preço aplicado na venda do imóvel ao banco. E é esta regra que o juiz considerou um "enriquecimento injustificado" do banco.
O juiz decidiu que em caso de incumprimento a entrega da casa ao banco liquida toda a dívida. Uma matéria aparentemente complexa que teve uma resolução inesperada.
Esta decisão judicial tem um alcance social muito importante e abre a porta a uma mudança no relacionamento entre os bancos e os clientes com contratos de crédito à habitação, designadamente no que se refere às consequências patrimoniais do tratamento que tem sido dado pelos bancos ao incumprimento do pagamento das prestações: perda da casa, perda do investimento (capital amortizado) e, ainda assim, sem que a dívida fique automaticamente liquidada quando a reavaliação do imóvel pelos bancos conduz a um valor inferior ao que foi avaliado no momento da compra ou da concessão do crédito.
Uma decisão judicial que, para já, vem corrigir uma prática duvidosa e suprir a falta de um regime especial de regularização de dívidas capaz de acautelar ambos os interesses em jogo, dos bancos e das famílias em particular as que se encontram em situação vulnerável.

sábado, 28 de abril de 2012

"O tambor"

- Que dia é hoje? Vinte e sete de abril?
- Não! Vinte e oito.
- Ah, pois é. Faz hoje anos que o teu pai foi hospitalizado, morrendo três dias depois. Foi há vinte anos, não foi?
- Vinte? Não! Tanto tempo!
- Olha, se não foi há vinte, não deve faltar muito.
- Amanhã vejo na campa o ano.
- Deixa lá, que eu vou já saber.
- Como?
- É fácil. Foi no final do Portugal-Escócia, em que nós ganhámos por cinco a zero, que a situação se agravou e eu chamei a ambulância. Olha, foi em 1993.
- Como o tempo passa!
- Neste dia o Salazar fazia anos.
- Fazia?
- Sim.
- Como é que sabes?
- É fácil. Na escola primária, no Vimieiro, obrigavam-nos a vestir a farda dos "lusitos" e, em marcha, a toque do tambor, íamos até à igreja de Santa Cruz para assistirmos à missa pelo "senhor presidente", que fazia anos. Uma chatice.
- Mas qual chatice? Ir à missa?
- Também. Nunca percebi porque é que tinha de ir à missa por causa do aniversário de uma pessoa. Lembro-me de ter perguntado à senhora que tomava conta do refeitório, e que nos torturava periodicamente com o óleo de fígado de bacalhau, baixa, gorda e forte que nem um touro bravo, porque razão eu tinha de ir à missa fardado. Era vê-la. Ofendida, lançou-me um olhar como quem diz, deixa lá que para a próxima vez enfio-te com três colheres seguidas pelas goelas, dizendo, ao mesmo tempo, que eu devia ter mais respeito pelo senhor presidente e que levaria uma estalada se continuasse com a conversa. Não te esqueças de rezar pelo senhor. Pede a Nosso Senhor Jesus Cristo para que lhe dê saúde e muitos anos de vida. Está bem, disse-lhe. Era o que mais faltava, pensei eu, até porque lá em casa, e na do meu avô, os comentários que ouvia a seu propósito não se coadunavam com rezas ou pedidos a Deus.
- E rezavas?
- Por ele?
- Sim.
- Não. Já te disse que era o que mais faltava. Uma seca. Tive que me ajoelhar porque era obrigado, mas nem um Pai-Nosso!
- Mas a chatice era só ir à missa?
- Não. O que eu queria era mesmo tocar o tambor, mas o professor escolhia sempre outro.
- Nunca chegaste a tocar? Cheguei, sim senhora. Uma das vezes, penso que estava na terceira classe, fui encarregado de tocar o bombo. O dia estava muito frio, o sol não aquecia. Dessa vez, fomos, depois da missa, pelo Rojão Grande, dando uma grande volta, ao contrário do habitual. Fartei-me de tocar bombo.
- Saíste-me um grande fraldiqueiro!
- Porquê? Por causa do bombo? O que eu queria era manter aquele toque, e olha que não falhei. Gostava de tocar o bombo porque fazia-me sentir importante, imitando os meninos na guerra, que, à frente dos soldados, ribombava-os, marcando o compasso para a luta que se avizinhava. Tinha visto um filme com esse quadro, homens armados com baionetas em riste precedidos pelos meninos dos tambores, marcando o ritmo do combate. Também li algumas bandas desenhadas. Recordo-me do herói francês, cujo nome consegui reter com muita facilidade, Lafayette, que, na guerra da independência da América, se acompanhava do menino do tambor. Que é que tu queres?
- Mas, confessa lá, sempre rezaste um Pai-Nosso pelo Salazar, não rezaste?
- Não! Então a governanta da escola enfiou-te com umas valentes colheradas de óleo de fígado de bacalhau, não foi?
- Qual quê! Ela, de facto, perguntou-me se tinha rezado pelo Salazar. Eu disse que sim, mas menti. Agora posso dizer que foi uma questão de "desobediência religiosa". Então eu ia rezar por alguém de quem ouvia dizer tanto mal e que, ainda por cima, tinha direito a missa no dia do seu aniversário e eu não? Olha, foi mais uma acha a somar a outras. A única coisa que valia a pena era ter uma tarde livre para a brincadeira, não ter de aturar o bruto do professor, e ainda consegui tocar o tambor, fingindo que ia para a guerra. E a guerra apareceu mais tarde...

sexta-feira, 27 de abril de 2012

"Ai o meu menino, ai o meu menino"

Em 2010 estimava-se que existiam 35 milhões de demenciados. Em 2050 passarão a ser 115 milhões, sobretudo a partir dos 60 anos. O crescimento far-se-á em todos os locais, mas será muito mais intenso nos povos menos desenvolvidos.

Sempre a vi com uma genica dos diabos, a qual, enfeitada quase sempre com um sorriso fulgurante, traduzia o seu amor pela vida, manifestando uma infinita confiança no valor do trabalho. E trabalhava. E ria-se. E fazia rir os outros. E confiava. E amava.
Quando me cruzava com ela era certo e sabido que iria ouvir uma expressão com muitos anos, "ai o meu querido menino, ai o meu querido menino", expressão suave, cheia de ternura, doce, dita em voz baixa, contrariando a sua tendência exuberante, para que mais ninguém pudesse saboreá-la, um ato de puro e generoso egoísmo, como quem diz, só eu é que posso dizer isto, pertence-me, não quero partilhá-la com mais ninguém. E eu gostava. E ainda gosto. Não obstante a idade, que, de um modo geral, torna-nos insensíveis a muitas expressões, há algumas que não morrem, vivem e fazem-nos viver.
Mais velha do que eu, mas muito mais velha quando era novo, menos, muito menos agora; o tempo de cada um encarrega-se de convergir para o mesmo foco, o final da vida, onde as diferenças se esbatem e a igualdade se manifesta em toda a sua plenitude.
Lembro-me de uma tarde de primavera avançada, ou de verão precoce, já não sei bem, em que no grande quarto as mulheres se encarregavam de dobrar os lençóis, de os passar e do cheiro que os mesmos libertavam da água do rio, arrefecendo a atmosfera como se estivesse na sua margem. Era o dia em que o rio, não muito distante, entrava em casa. Uma frescura e um odor inesquecíveis. Era nova, mas mulher feita, e eu um catraio, um pirralho, atento a tudo o que me cercava. Nesse dia, a sua voz não se fez sentir com a alegria que a caracterizava, nem tão pouco fez a sua saudação tão típica, "ai o meu querido menino, dá cá um beijo". Sentou-se na borda de uma das camas e começou a falar com uma tia mais velha, solteirona e meia bruta, pelo menos nunca se livrou do meu preconceito infantil. Falavam em voz baixa, não consegui ouvir o que diziam, mas era muito estranho. Passadas umas semanas compreendi tudo, a barriga tinha aumentado de volume. Tinha amado. Depressa voltou ao normal, colocando a sua voz na oitava que lhe era tão própria e disparando sempre que me via, "ai o meu querido menino, ai o meu querido menino". Foi à vida, casou, trabalhou, amou, e acabou um dia por demenciar. Quando soube deste último pormenor fiquei incomodado. De tempos a tempos via-a, ouvindo sempre a mesma expressão, expressão que foi, também, transmitida para o meu mais novo, uma estranha "genética" não relatada em nenhum tratado ou compêndio.
Entro no lar e vejo-a sentada. Os seus olhos, vidrados como se tivessem sido acabados de polir, denunciavam estar desligados da alma, a pele, retesada, mais parecia ter sido curtida em vida, os lábios, penosamente, agarravam-se a um sorriso perdido e a saliva, liberta das emoções, teimava em querer libertar-se nos cantos. Corpo amarrado à cadeira, alma aprisionada no corpo. Olhou-me. Olhei-a. Chamei-a pelo nome. A alma, aprisionada no corpo, ouviu e fez um esforço louco para comunicar, aproveitou uma nesga de lucidez, e disse: "ai o meu menino, ai o meu menino", a pele relaxou-se, adquiriu expressão, calor e cor, o corpo estremeceu, quis levantar-se, abaixei-me, encostei-lhe a cara e ouvi: "ai o meu menino, ai o meu menino", num estertor de alegria de uma alma sofredora e agrilhoada a um maldito destino. Passados poucos minutos, a nesga de lucidez fechou-se e eu senti a dor da sua alma, desejosa de amor, de liberdade e de carinho, castigada a um purgatório sem sentido nesta estranha vida.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Alguém quererá acudir aos Certificados de Aforro?

1. Já aqui me referi a este assunto mais do que uma vez, na vigência do anterior e do actual Governo: no anterior para protestar contra as medidas decretadas em 2008 e que, com efeitos retroactivos, puseram em causa a confiança dos aforradores neste instrumento tradicional de poupança...com o actual para perguntar se nada iria ser feito para alterar essa situação.


2. Para recordar o que tem sido a morte anunciada dos CA, aqui fica um breve registo do saldo vivo das aplicações neste instrumento desde que atingiram um valor máximo em Janeiro de 2008 (valores em milhões de Euros):

Jan/2008 – 18.186

Jan/2009 – 17.189

Jan/2010 – 16.824

Jan/2011 – 15.289

Jun/2011 – 13.145

Jan/2012 – 11.138

Mar/2012 – 10.705

3. A argumentação do anterior Governo para dar a grande machadada nos CA consistiu em dizer que não fazia sentido o Estado continuar a subsidiar a poupança dos particulares que o anterior regime de remuneração imlicava: argumentação que aqui procurei rebater, considerando-a incompreensível, uma vez que o resultado desta política foi a substituição dos CA por nova dívida colocada em investidores institucionais, nomeadamente externos, a custo muito superior ao que vinha sendo pago aos detentores dos CA!!

4. Supostamente para substituir os CA, o anterior Governo criou em Julho de 2010 os Certificados do Tesouro, que, como não era difícil prever, estão muito longe de corresponder às expectativas então anunciadas: desde o momento da sua criação até Março de 2012 as aplicações em Certificados do Tesouro somam € 1.346 milhões, enquanto a redução das aplicações em CA atingiu € 5.596 milhões! Quer dizer que as aplicações nos Certificados do Tesouro representam apenas 24% do valor resgatado dos CA...para onde foram os restantes 76%, alguém quer adivinhar?

5. Ainda tive esperança que os novos responsáveis tivessem vontade de rever esta situação, mas já passou tempo demais e nada, mesmo nada aconteceu...devo concluir que nada irá mudar, os CA vão morrendo mês a mês, pouco falta para chegarem ao nível de 50% do saldo registado em Junho de 2008...

6. Não deixa de ser curioso que esta situação aconteça em paralelo com discursos em que se assinala e lamenta a insuficiência da poupança interna para financiar o investimento...e com a reconhecida dificuldade em assegurar que o Estado possa voltar a financiar-se nos mercados em condições minimamente aceitáveis...

7. Ainda haverá alguém com poderes, que queira acudir aos CA?

38 anos é muito tempo

Trinta e oito anos é muito tempo. Por isso soa estranho aos ouvidos de muitos adultos de hoje o que quererá dizer essa misteriosa frase, sempre repetida nesta ocasião festiva, de que “não se cumpriu Abril”. Escusado será mesmo tentar explicar que é um remake de trazer por casa do pessoano “falta cumprir Portugal” , porque então a confusão é ainda maior. E o que é que se queria “cumprir” com Abril? Depois, ouvem-se, nos estafados discursos que se esquecem dos 38 anos e se  repetem desde os 10, 15, 19, 23, 34, que se lutou pela Liberdade, também alguns lutaram pelo “fim do capitalismo, “da opressão”, alguns, muito poucos, falam vagamente do fim da guerra colonial, como se tivesse sido um episódio breve de uma grande confusão. Cumpridos a rigor todos os clichés que há muito se esvaziaram de sentido para quem os ouve, logo se retoma o linguarejar do dia a dia político do combate terreno entre partidos, ora estás tu no Governo, ora estavas tu anteontem, e há 11, 17, 24, 31, 36 anos e disparam em acusações mútuas para que o pobre e perplexo ouvinte possa talvez tirar alguma conclusão sobre quem afinal é que não cumpriu o tal Abril. As imagens de arquivo recuperam chaimites, homens barbudos, umas mulherzinhas nos campos, cravos, muitos cravos, e homens fardados, umas mesas de gente nervosa e assustada a fazer proclamações ao povo, e tudo acaba em bem, ficámos livres, viva a liberdade. Continuamos, passados 38 anos, a mostrar a História dos 38 anos anteriores tal e qual a víamos com os olhos desse dia, tal como ouvimos falar do país de hoje como se ainda estivéssemos a tempo de o mudar de novo, a partir daí. Qual Penélope, o 25 de Abril desmancha o País até então, e volta a discutir como é que o vai refazer, cada ano, cada ano, ainda e sempre, a partir de Abril. Mas o tempo pode ser muito duro, Abril passou e muita coisa sucedeu por causa de Abril, apesar de Abril, depois de Abril, ouvimos e pasmamos que a “esquerda” e a “direita” esgrimam com palavras parecidas os mesmos argumentos de sempre, os mesmos factos, os mesmos falhanços, as mesmas recriminações. Mas já quase ninguém sabe do que falam. Eu sei que é um lugar comum, mas de facto não serve de nada comemorar o passado se isso só servir para recriminar o presente e para nos fazer crer que não merecemos um futuro.

Terapias da crise...


É um serviço que prestam ao país as televisões que apresentam programas que divulgam casos de empresas e negócios bem sucedidos, que convidam empresários e gestores para explicarem como trabalham, as razões dos êxitos, como olham para a crise e como transformam dificuldades em oportunidades. Infelizmente são raros estes momentos porque o que vende são as más notícias. Uma prática doentia, uma espécie de auto flagelação.
Ouvi hoje à noite com gosto o programa Negócios da Semana da SIC Notícias, dedicado ao tema das exportações e crescimento. Foram convidadas três empresas – Hamburgueres H3, Lanidor e Kyaia - dos sectores da alimentação, têxtil e calçado. São empresas que têm uma posição confortável no panorama das exportações e manifestam expectativas positivas para os seus negócios e para o futuro de Portugal. Nos tempos que correm, carregados de notícias deprimentes, ouvir empresários e gestores num tom positivo e confiante sobre o futuro é realmente um bálsamo. Não estão imunes à crise e às dificuldades, cá dentro e lá fora nos mercados tradicionalmente exportadores, mas enfrentam-nas com coragem e como um desafio. É gente que sabe que não pode contar com o Estado, mas que quer que o Estado não lhes dificulte a vida, que se concentre na sua própria reforma e nas reformas que ajudem a economia. É gente que sabe do que fala, que conhece a economia. É gente que trabalha, que investe, que corre riscos. Encontram no país potencialidades e confiam em ideias novas e na inovação e numa nova geração de talentos e competências. Ouvir e ver o lado bom do país é fundamental, prova que há um Portugal empreendedor e confiante no futuro. Conhecer bons exemplos também faz parte da terapia da crise...

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Engano

- Está? É da casa do senhor Flores?
- Não, minha senhora, aqui não vive nenhum senhor Flores.
- Oh, desculpe, foi engano.
- Não há problema.
- Muito obrigada e um bom dia.
- Igualmente para a senhora.
Um engano qualquer um pode ter. Neste caso foi prontamente assumido, porque era evidente e inócuo.
Mas há enganos e enganos. Uns são simples, banais, fazem parte do dia-a-dia, mas mesmo assim podem complicar a vida. Mas há outros que são frutos de maus juízos, de preconceitos, de falta de visão, de uma teimosia intrínseca, revelando-se dolorosos e injustos para terceiros. Quando um erro desta natureza não é assumido, então, é uma situação grave, mas há, ainda, situações mais complexas quando é utilizado com propósitos bem definidos.
Há quem não admita os seus erros, porque são considerados como sinais de fraqueza, de insucesso ou de inferioridade. É mau, já que podem estar na origem de condutas fabricadas, artificiais, falsas, incómodas, daninhas, as quais são capazes de estragos subsequentes ao criar uma complexa teia ou rede de explicações estapafúrdias e perigosas. Há, no entanto, quem "confesse" os seus erros, uns, de forma teatral, e bem construída, para minimizar alguns impactos que lhes podem ser nefastos, ou mesmos fatais, em termos sociais ou políticos, embora, nos seus íntimos, saibam que é um mero disfarce, o que interessa é salvar as aparências, outros não, conseguem ser sinceros, vislumbrando-se o incómodo produzido, mas, habitualmente, não são perdoados.
Enganar é a estratégia mais frequentemente utilizada pelo homem para alcançar os seus objetivos.
Lembro-me de ouvir em pequeno que "meio mundo andava a enganar o outro". Ouvi e perguntei: - E tu, pertences a qual? - A minha avó cruzou os braços, baixou a cabeça e ficou a olhar para o fogo da lareira. Não respondeu! Eu sabia a resposta, mas fiquei incomodado por saber que alguém, ao dizer o que tinha acabado de dizer, soubesse que pertencia aos enganados e não resolvia o problema. Se ela com aquela idade andava a ser enganada, então o que é que iria acontecer-me? Com o tempo comecei a dar atenção, muita atenção a estes aspetos e, realmente, o engano está por todo o lado. 
"Fui levado ao engano". Uma expressão muito comum; já a ouvi em muitas circunstâncias e também já a pronunciei. É o melhor adubo para fazer crescer e desenvolver técnicas e cursos nestas matérias, utilizando designações mais ou menos sonoras ou atraentes, originando uma subespécie de "enganadores" profissionais ao serviço de bancos, seguros, companhias de telecomunicações, das indústrias alimentares, da venda de inúmeros produtos miraculosos, até ao serviço de religiões, que prometem belos e encantadores futuros no além, a troco sabe-se lá de quê! Mas não fica por aqui, a política também é um bom campo para quem tenha queda para sobreviver enganando os outros. Dentro do grupo de pessoas que sabem que estão a ser enganadas, há muitos que não se importam, pelo contrário, até devem gostar, sim, porque há os que se sentem bem quando lhe trocam as voltas. Há gostos para tudo.
Um engano pode acontecer a qualquer um, mas enganar, propositadamente, para tirar proveito, constitui a forma mais clássica e certa de ganhar dinheiro, estatuto e poder. Não há volta a dar-lhe. De vez em quando há denúncias, reflexões a propósito, cria-se legislação apropriada, definem-se normas de conduta ética e publicitária com o objetivo de evitar tamanho descalabro. Sempre entretêm os incautos e enriquecem os profissionais.
Ao falar do "engano", e da minha tentativa em evitar ser enganado, sem passar para o outro grupo, concluo que também já enganei. Não vou confessar os meus enganos, partilhados por outros, só espero que não tenha prejudicado muitas pessoas. Muitos doentes querem que os engane, e eu engano-os, indo de encontro ao seu desejo, embora fique algumas vezes na dúvida. Mas os familiares ficam a conhecer a verdadeira situação, talvez daí a expressão que utilizam, quando falam de alguém querido muito doente, "foi desenganado pelos médicos".
De engano em engano vamos sobrevivendo, até que um dia, a morte, a depuradora de todos os enganos, faz a sua entrada. A única que é imune ao engano, e mesmo que consigamos adiá-la, "enganando-a" com todos os meios ao nosso alcance, ela ri-se, porque tem uma paciência única, sabe qual é o resultado final.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Sem a economia a funcionar, jamais haverá reequlíbrio das contas públicas...

1. Esta emblemática frase encontrei-a no editorial do conceituado jornal Público (que ainda leio com gosto, confesso) da edição de 21 do corrente, que foi dedicado ao cenário de execução orçamental que o editorial rotula de “cenário negro”.


2. Começo por dizer que a expressão “cenário negro” para classificar a execução orçamental do 1º trimestre de 2102 é excessiva pois resulta da comparação com os valores da mesma execução no 1º trimestre de 2011, valores estes que, como na altura aqui comentei, repetidamente, eram notavelmente irrealistas, estavam subavaliadíssimos em relação aos encargos com a dívida pública -, daí que, por exemplo os encargos da dívida registados neste 1º trimestre de 2012 sejam 212% dos registados no mesmo período de 2011.

3. Mas não é a execução orçamental de 2012, cujo resultado até agora, apesar de não corresponder ao “cenário negro” do Público, está longe de ser brilhante (tema para um próximo texto), o motivo principal deste Post.

4. Este texto é provocado pela crença admirável do autor do editorial num conceito mítico e misterioso de “economia a funcionar” - embora em lado nenhum do editorial se explique em que consiste esse funcionamento, que meios utilizar para por a economia a funcionar...tampouco se explica o pressuposto de que parte, de que a economia não está a funcionar...

5. Começo pois por perguntar: será que não está a funcionar uma economia cujas exportações crescem ao ritmo nominal de 13% (nos primeiros 2 meses do ano), quando os cenários macro pressupunham um crescimento de 7%, na melhor das hipóteses?

6. E o que pretende o autor do editorial significar com “economia a funcionar” – se não se pode empurrar o investimento privado, porventura mais investimento público, mais obras públicas provavelmente? Mas já vimos no que deu essa receita, vamos insistir na mesma tecla? E para além desse histórico negativo, onde está o dinheiro para prosseguir tal política se ninguém nos fia, pelo menos por agora?

7. Ou será que pretende, como eu pretendo de resto, que os impostos fossem mais baixos? Mas então terá de explicar como é que se consegue baixar os impostos nesta altura, mantendo o cumprimento dos objectivos do PAEF...

8. Pela minha parte até entendo que teria sido preferível, teria sido bem melhor, que as medidas de consolidação orçamental se tivessem limitado à redução da despesa e ao agravamento da tributação sobre o consumo – evitando o agravamento da tributação sobre o rendimento (sobretudo das empresas) e sobre a poupança. Foi um erro, que assinalei na devida altura, mas agora já não tem remédio...

9. Tal como este infeliz editorial, andam por aí uns arautos do crescimento a proclamar que se está a matar a economia: paradoxalmente, esses arautos estiveram calados durante o período em que paulatinamente (e estupidamente) se foram delapidando os recursos que agora tanta falta nos fazem...agora é que se lembram do crescimento?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

25 de abril sempre?

Afinal não. Para alguns, 25 de abril nem sempre. Só quando se quer. Mário Soares, Manuel Alegre e os membros da associação 25 de abril decidiram não comparecer às cerimónias comemorativas do dia da liberdade que, como é tradição, decorrem na casa da democracia perante os eleitos pelos portugueses. Ignoram duas coisas elementares. A primeira, o 25 de abril não tem dono. Fez-se em nome do Povo e não em nome de qualquer aristocracia militar ou civil. E seguramente não se fez para ficar prisioneira de autorias. A segunda, no 25 de abril não se comemora uma data, nem constitui o momento para enfunar vaidades. Celebram-se princípios e valores sufragados pelo Povo ao qual, na verdade, se deve o sucesso da revolução. Um desses princípios é o do respeito pela vontade popular, expressa democraticamente em eleições livres. Por isso, percebe-se mal (ou se calhar não custa a perceber) que a atitude destas personalidades seja justificada pela discordância com um governo e com uma política que a maioria dos portugueses, que se manifestou em liberdade, democraticamente legitimou. Ter-se-ão estes senhores esquecido que ser democrata é, sobretudo, aceitar que outros possam ter do País e do seu futuro uma ideia diferente da nossa?




Sociedade kitsch

Uma vez as minhas filhas vieram dos escuteiros a contar que tinham feito um jogo muito difícil: tinham que se apresentar uns aos outros, como se não se conhecessem de lado nenhum, mas era proibido recorrer a dados objetivos, como a idade, a descrição física, onde viviam, a família que tinham, etc. Só podiam recorrer a dados subjetivos, indicando os seus valores morais e espirituais, contar do que é que gostavam, como reagiam a diversas situações, o que as emocionava ou não, enfim, um perfil com base no qual os outros tinham que adivinhar a sua identidade. Na altura fiquei a pensar que realmente era um exercício desafiante, de tal modo nos desabituámos de refletir e dar atenção aos valores morais, e lembrei-me deste episódio ao ler hoje o pequeno ensaio de Rob Riemen, “O Eterno Retorno do Fascismo”, (ed. Bizâncio) um trabalho muito interessante e perturbador, onde o autor refere a certa altura que a nossa sociedade é caraterizada pelo Kitsh porque tudo se orienta para a satisfação do prazer e tudo é avaliado em função do ego e da sua medida. “Um ego sensível como medida de todas as coisas”, diz o autor (pág. 61), “não suporta qualquer crítica e ignora a autocrítica. A nossa identidade também já não é a expressão de valores espirituais (de quem somos), mas de aspectos matérias: as nossas posses e o nosso aspecto. Podemos literalmente comprar a nossa identidade, adaptá-la e modificá-la. Por conseguinte, o constante impulso de comprar e possuir não é tanto uma manifestação de ganância mas antes o desejo de possuirmos uma identidade que possamos exibir perante um maior número de pessoas possível na expectativa de que nos achem agradáveis. (…)Agradável passa a ser a medida de tudo a que dedicamos o tempo: as nossas relações devem ser agradáveis, tal como os nossos amigos, os nossos estudos e o nosso trabalho. (…)”. As consequências desta superficialidade na política, na educação, no modo como encaramos a velhice e a morte ou na simples relação entre pessoas, permite apenas que esta fuga constante se sustenha no tempo efémero em que é possível manter as aparências. Mas, quando esta ilusão se dissipa, “o homem-massa sente despertar nele o ressentimento, o ódio e o rancor” (p. 64).
É muito interessante, e muito assustador, olhar a rápida evolução do mundo que conhecemos à luz desta breve análise, esperando que seja possível encontrar-se, ainda, uma transição não violenta para uma sociedade mais humanista e menos kitsch.

domingo, 22 de abril de 2012

O património que não valorizamos

Hoje celebrámos o Dia da Terra revisitando um dos mais bonitos locais de Lisboa, o Jardim Botânico Tropical ali mesmo ao lado do Mosteiro dos Jerónimos. Salta à vista o desleixo dos espaços, a falta de informação (limita-se à placa indicativa do nome científico e popular de cada espécie), a vetustez e decrepitude das estruturas. Ao espaço só se acede pagando. Dois euros para adultos que nem direito dão a um singelo guia informativo sobre a história e o significado daquele acervo. O dinheiro recolhido não parece suficiente para manter aquele museu ainda vivo mas que aparenta sinais de lamentável desprezo. Um património que não valorizamos como tantos outros, apesar do enorme fluxo de turistas que visita aquela zona da cidade. Mesmo lamentando, foi um excelente passeio porque o desleixo dos homens ali  é  compensado pela beleza e por vezes pela imponência de uma natureza importada.




Absurdos e galináceos...


As coisas que não sabemos. Portugal está em risco - ou melhor estão os produtores do sector avícola, estão os consumidores e está a balança comercial porque somos exportadores de ovos - de perder três milhões de galinhas por não cumprir com as dimensões europeias das gaiolas das galinhas poedeiras. O destino destas galinhas poderá ser o abate. De um momento para o outro perderíamos metade das galinhas nacionais e o correspondente em ovos. Seria um grande prejuízo para o país. Num momento de crise como aquele que estamos a atravessar o que dizer de uma medida desta “envergadura”?
Uma directiva comunitária que entrou em vigor no início do ano - note-se que com um atraso de doze anos - estabelece novas medidas para as “casas” das galinhas poedeiras porque as galinhas precisam de uma nova dignidade, devem ter mais espaço para viver, dormir, subir aos poleiros, desgastar as próprias garras e pôr os ovos.
Pergunto-me se a união europeia não tem coisas mais interessantes a que se dedicar, questiono-me sobre a utilidade deste intervencionismo. Estarei errada, eu sei, porque deve estar cientificamente provado quais são as condições de habitabilidade que asseguram a qualidade de vida das galinhas. Evidentemente que nada tenho contra o bem-estar dos galináceos, mas francamente temos coisas bem mais graves e prioritárias para resolver. Antes das galinhas estão as pessoas. Vivemos tempos de absurdos.

sábado, 21 de abril de 2012

Testemunhos...

... de autênticas reformas estruturais no interior do País. Neste caso no transporte público.
(foto retirada da página do Facebook de António Pimenta)

Duas estatuetas...



Comecei a trabalhar cedo. A meio da manhã dei a desculpa habitual, vou tomar um café, vá, vá, senhor doutor e descanse um pouco. Não fui nada, já tinha tomado um logo que cheguei. O que eu queria era um pretexto para ir ao lado, àloja das velharias. O dono, o Daniel, tornou-se meu amigo e espera que passe pelo seu estabelecimento. É o que eu faço praticamente todas as semanas. Tenho alturas em que adquiro alguns objetos, desenhos ou quadros. Já conhece os meus gostos. Por vezes, ao entrar, depois de nos cumprimentarmos, avança com satisfação, tenho aqui uns desenhos a seu gosto. Outras vezes antecipa-se dizendo, esta semana não tenho nada que lhe interesse, mas dê uma volta, pode ser que encontre algo que lhe agrade. É o que faço, duas voltas no mínimo. Quando não encontro nada, foco a minha atenção nas "miudezas" e acabo por comprar uma peça de valor reduzido, desde que seja bonita, claro. Faço-o com prazer. O Daniel agradece mais a atenção do que o lucro que consiga obter. Às vezes, vendo a minha desilusão, é ele que sugere um ou outro objeto, rebaixando o preço a valores substancialmente inferiores aos que estão marcados, isto quando estão, porque muitos não têm preço. Prefiro as peças sem preço, apesar de o raio do homem ser pior do que um cigano. Pede valores exorbitantes, só para me provocar, rindo-se, baixando-os logo a seguir. Esta é a deixa para entrar com as minhas propostas. Depois de umas arengadas a propósito, fico mais ou menos com a sensação de que vou fazer um bom negócio, antecipando o valor final, o qual só muito raramente nãé aceite. Neste caso, se tiver muito gosto em adquirir a peça, digo-lhe que não tenho dinheiro que chegue. No estabelecimento não hámultibanco, se bem que a pouco mais de duas dúzias de metros haja uma caixa, mas nunca me mandou ir lá, porque seria uma forma descortês de me tratar, é o que eu sinto, porque o homem não tem nada de burro. A resposta éinvariavelmente a mesma, não há problema, na próxima vez paga o resto. Depois, nas vezes seguintes, acabo por adquirir algo mais dispendioso e a "dívida" fica liminarmente perdoada, ou, então, sem me aperceber, o que é o mais certo, acaba por ser incluída no preço da nova aquisição. Eu fico convencido de que fiz um bom negócio e o vendedor ganha o seu. Uma certa cumplicidade que tem funcionado muito bem.
Esta semana, ao entrar perguntei-lhe se tinha algo de novo, não, o negócio não anda nada bem, não vendo, não compro, mas o melhor é dar uma volta. Comecei a cirandar e, no meio de vários quadros com estampas fracas, encontro um pequeno óleo, não assinado, belo, enigmático, com uma figura feminina sentada numa rocha, com as mãos numa posição pouco habitual que ainda não consegui decifrar. Quando custa? Aproximou-se, e, sem qualquer hesitação, pediu uma bagatela. Engoli em seco. No espaço de uma semana era o segundo a adquirir nestas circunstâncias. Como era barato, tinha ganho o dia, olhei para os santos, mas nada de especial, sem interesse, exceto uma Santa Helena. Uma estatueta interessante. Foi a primeira vez que vi esta santa. Subitamente, lembrei-me do seu papel na "oficialização" do cristianismo e da influência que teve no seu filho, o imperador Constantino, que, através do Édito de Milão ou Édito da Tolerância, declarou o império neutro em matéria de religião conferindo aos cristãos a liberdade de culto. A neutralidade religiosa durou pouco tempo, até Teodósio ter declarado o cristianismo como religião oficial.
Fui ler o "Édito" e achei que é uma grandeza em termos de tolerância ao permitir o culto livre aos praticantes das religiões sem imposição oficial de nenhuma. Naquela época uma medida destas foi de grande alcance, só espero que não tenha sido uma manobra política para que os "perseguidos" ocupassem o lugar dos "perseguidores". De qualquer forma, hoje, faz-nos falta um "édito de tolerância" de forma a evitar a supremacia imposta pela religião "oficial" do estado português ao impor o que lhe apetece.
A santa levou-me, também, a associá-la com a ilha do mesmo nome, descoberta por João da Nova no seu dia, 18 de agosto, e as atribulações de Napoleão, ou seja, de repente tinha motivos para dissertar sobre vários assuntos, além da beleza da mesma e da espiritualidade subjacente à sua conduta que a hagiografia descreve com belos pormenores. 
Há muito que a minha coleção de santos estava em banho-maria. Gosta da estatueta, perguntou-me o homem das velharias, é bonita, mas tenho ali uma outra dentro do armário, só que nãé barata, às tantas não lhe interessa. Mostre-me. Foi então que vi uma santa bem talhada, numa posição de sofrimento, em que a face e os dedos entrelaçados emanavam dor visível, palpável, pouco habitual, questionando-me como é que o artista conseguiu criar e talhar estes sentimentos. Como é que se chama a Nossa Senhora, não sei, não faz mal, pensei, parece-me uma Nossa Senhora da Piedade ou talvez das Dores, uma abertura no peito levou-me a suspeitar que ali deveria ter estado, talvez, uma espada. Negociei. Não regateei. Deixei-o à vontade. Foi justo. A beleza da obra seduziu-me. Explicou-me que as "lesões" visíveis no queixo, nos dedos e nos joelhos eram devidas às pessoas que passavam a mão pela figura, ao pedirem favores, provavelmente muitas almas em ferida, desgastando os três setores mais proeminentes. Tinha alguma lógica, mas o que ele quis foi justificar os "defeitos". Para mim eram insignificantes.
Embrulhou as três peças. Paguei apenas a última, a "Nossa Senhora". Confesso que perturba, porque emana dor, dor de alma, dores de muitas almas com quem me cruzo no dia-a-dia, ai se eu pudesse registar o seu sofrimento, talhava-o num pequeno pedaço de madeira...

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Os observadores da crise

"...(há a ) necessidade de enquadrar a crise portuguesa no contexto mais amplo, regional e global, onde se estruturam os quadros sistémicos que explicam, em última instância, a crise, e em cujo seio devem também ser encontradas as soluções que garantam a coesão social e o respeito pelo trabalho digno”.
Boaventura Sousa Santos, in Jornal de Letras
Ora pois, é nos quadros sistémicos mais amplos e globais que se encontra a explicação da crise portuguesa. Nada contribuímos para ela. E é lá que se devem encontrar as soluções...
O nosso papel limita-se a enquadrar a crise. E a observá-la. Agora através do Observatório de Boaventura Sousa Santos e de Carvalho da Silva. Trabalho (?) "chato", este de estar sempre a observar a crise. Mas há gente para tudo.
PS: Quando acabar a crise, o pessoal arranja outra observação. Com as mesmas lentes, claro está!

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A ilusão (suicidária) do crescimento económico...

1.Não creio que haja já emenda possível para toda uma série de comentadores político-económicos que continuam agarrados à ideia de que, apesar da situação aflitiva a que o País chegou, compete ao Governo “promover” o crescimento económico por todos os meios ao seu alcance...
2.Alguns são mesmo bem explícitos na receita e advogam abertamente o regresso ao aumento da despesa como forma de impedir o que entendem por “colapso” da economia: nesse sentido, ouvi por exemplo há 2 ou 3 dias o SG de uma importante confederação sindical afirmar, sem rodeios, que se não houver um aumento da despesa e da procura interna propulsionada por esse aumento, a economia afundar-se-á...
3.Impressiona bastante este apego mítico aos méritos da despesa pública como motor da economia, quando estamos a passar por uma crise financeira gravíssima que só não resultou em bancarrota porque em Maio do ano passado o País celebrou um acordo com o serviço de urgências da União Europeia e do FMI, de que resultou o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) em curso até 2014...
4.A leitura dos relatórios da UE e do FMI, recentemente divulgados, relativos ao 3º exame da implementação do PAEF, não deixa quaisquer dúvidas quanto ao que nos cabe fazer nos tempos mais próximos: tudo menos deixar derrapar a despesa pública; é absolutamente evidente que qualquer recuo no processo de consolidação orçamental representará a “morte do artista”.
5.Pode discutir-se a questão das reformas estruturais, perguntando por exemplo porque motivo não existe maior determinação da parte do Governo no cumprimento do objectivo de cortar rendas excessivas de que beneficiam empresas instaladas em mercados protegidos, de que é exemplo mais emblemático o da electricidade - rendas que são um custo excessivo para os consumidores, nomeadamente as empresas expostas à concorrência externa.
6.Mas nem por um momento poderemos cair na tentação de ouvir essas sereias (algumas bem feias, por sinal) que nos apontam o regresso à via do crescimento virtuoso da despesa...
7.A noção de que poderemos escolher o nosso próprio caminho, deixando de atender aos compromissos que assumimos e voltando ao modelo clássico de “empurrar” a economia com o orçamento, situa-se no plano suicidário: em 1º lugar, a simples tentativa de levar por diante essa ideia acabaria em poucos dias, por absoluta falta de “matéria prima”; em 2º lugar, a crise de confiança que esse gesto provocaria colocava-nos de novo na estaca zero, de mão estendida mas desta vez sem argumentos para receber qualquer coisa em troca desse gesto...
8.É curioso, por isso, que uma notável personalidade que se vem pronunciando quase diariamente e em quase todos os órgãos de comunicação social sobre a política nacional, tenha vindo dizer que “Passos Coelho está a fazer um péssimo trabalho”...
9.Não vou discutir a qualidade do trabalho que Passos Coelho está a fazer até porque tenho mais em que ocupar o meu tempo: direi apenas que esse trabalho, ainda que seja mau, seria INFINITAMENTE PIOR se cedesse à tentação de regresso ao “crescimento económico” que o crítico em questão tanto advoga...

Cordeiro vestido de lobo

Hoje, ao almoço, ouvi um bom e velho amigo discorrer, indignado, sobre a “inqualificável” pretensão do ministério da economia em reduzir as indeminizações por despedimento para 6-10 dias por ano trabalhado. Depois de esvaída a fúria tentei convencê-lo do que se tratavam de boas notícias, pois ao desonerar o emprego, esta medida estimularia a contratação e, em consequência, o crescimento económico. Esta conclusão - contrária às profecias apocalípticas da esquerda nestas matérias – resulta da mais básica lei da economia, segundo a qual a queda do preço de um bem/serviço causa um aumento da respetiva procura. Os serviços do trabalho não escapam a este princípio, por maior e mais eficaz que seja demagogia engendrada pelos sindicatos. A literatura empírica especializada é, também, inequívoca: menores impedimentos legais ao despedimento – tudo o resto constante – reduzem o desemprego agregado na economia.

O meu companheiro de almoço – ele próprio micro-empresário bem sucedido - aceitou o argumento, mas lamentou o timing da medida, antevendo o destino desgraçado de trabalhadores lançados no desemprego com uma mão à frente e outra atrás. Não deixa de ter razão nas suas preocupações, ainda que o alvo devesse ser a crise - provocada por excessos de que aqui já muito se falou e fala – e não a alteração da lei laboral.

Na verdade, a redução das indeminizações por despedimento é uma medida de elementar justiça social, que deveria ser aplaudida por todos os dizem bater-se pelos mais desfavorecidos.

As barreiras legais ao despedimento criam, como qualquer outra forma de protecção do emprego, uma ignóbil segmentação no mercado de trabalho entre os que estão formalmente empregados e os que não estão. Ao primeiro grupo assiste um conjunto de direitos e garantias, nomeadamente a possibilidade de manter o posto de trabalho e a remuneração associada, independentemente do desempenho. Para o segundo grupo, a vida é mais difícil. O ónus inerente ao despedimento dos trabalhadores desincentiva os empresários a contratarem, mesmo em situações em que o negócio justificaria uma expansão da força de trabalho, o que significa que quem está fora do mercado de trabalho (porque tem poucas qualificações ou porque é jovem) tem enormes dificuldades em nele ingressar. Frequentemente, a solução passa pela prestação avulsa de serviços, a recibos verdes, sem qualquer seguro ou protecção, num esquema de grande precariedade. Outra alternativa é o desemprego e a entrega a uma vida inútil e de dependência, sustentada pelo estado.

Daqui se conclui que as políticas de protecção ao emprego conferem conforto e tranquilidade aos insiders à custa da miséria dos outsiders; acontece que só os primeiros pagam quotas aos sindicatos…

quarta-feira, 18 de abril de 2012

"Sons e odores do passado"

Acabei de receber o livro, uma coletânea de crónicas. Um gosto pessoal.

Numa das badana escrevi: "Todas as crónicas incluídas neste volume foram inspiradas em vivências de Santa Comba Dão; muitas mais poderiam ser criadas, aguardam apenas o momento adequado.

Do passado ficam-nos muitas recordações, guardadas nas gavetas da memória. De vez em quando, ao abri-las, sentimos estranhas fragrâncias e sons capazes de nos transportar no tempo.

Guardamos facilmente imagens através de fotografias, mas não registamos em álbuns os cheiros e os sons do passado. Ninguém anda, no dia-a-dia, a gravar conversas perdidas ou sons únicos, irrepetíveis, do mesmo modo que não se armazenam certos odores.

Nesta obra existe apenas uma imagem, a da capa, a igreja. A razão é muito simples. Quando adquiri a obra, pintada num belo sábado de manhã, fiquei admirado com o ângulo da mesma, a parte lateral, onde se visualiza a escadaria de acesso. O pintor não optou pela bela frontaria. Pensei, não quis retratar o monumento, mas sim pintar uma escadaria onde passaram e continuam a passar as almas. É isso, não se veem, mas é por ali que passam. Simbolicamente, representa todas as imagens da vida dos que por aqui andaram e andam.

Sons e odores do passado aliados a uma imagem que dispensa palavras..."

Gostava de oferecer um exemplar aos amigos e comentadores do blog, não sendo possível, coloquei no SCRIBD a versão em pdf.

(http://pt.scribd.com/doc/90045103/Sons-e-Odores-Do-Passado)

Do not disturb



Este belissimo quadro de Victor De La Fuente, agora exposto na AllartsGallery, chama-se "Donde sueña la luna" e chamou-me a atenção o absurdo de uma tabuleta, em primeiro plano, a dizer "do not disturb", o interdito dirigido a coisa nenhuma, impondo um traço de autoridade onde ele é manifestamente inútil e desajustado. Aquela tabuleta destina-se a proteger o quê? o sono da lua, assim contraposto à liberdade humana de avançar, de agir, de gritar? Quantas e quantas proibições se destinam apenas a proteger o "sonho da lua", sem medir o que coartam pelo caminho? Aqui deixo, à imaginação dos leitores, o desafio de outras interpretações ou, simplesmente, o prazer de olhar um dos quadros deste pintor espanhol que suscitou logo a minha curiosidade.

Pagar a gratidão alheia!...

No último fim de semana, as Jornadas Parlamentares do PS arrancaram com sentida e aplaudida homenagem a Sócrates e Paulo Campos.
Os Parlamentares mostraram-se agradecidos. Um acto sempre bonito.
Quanto aos portugueses, bom, são eles que pagam tanta gratidão.

Festa é festa!...

Só a Administração Pública da Andaluzia tem mais carros de serviço distribuídos aos dirigentes e funcionários públicos provinciais do que toda a Alemanha, incluindo os Estados Federais.
Ana Palácio, citando de cor, em entrevista creio que à Bloomberg.
Ora aí está um campo em que a Alemanha é vítima de gritante disparidade regional.
Começo mesmo a acreditar que a Srª Merkel e o Sr. Sarkozy não têm uma visão global para a Europa.
Mas festa é festa. E não só em Portugal.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Entre o estar tudo bem e o estar tudo mal...

O tiro de partida foi o congelamento das reformas antecipadas do regime geral da segurança social. De lá para cá a especulação em torno da (in)sustentabilidade da segurança social não tem parado. De um lado estão os especialistas do alarmismo a declararem que a segurança social está à beira da falência, que é preciso tomar medidas urgentes, não há dinheiro para pagar as pensões, do outro lado estão os especialistas que se desdobram para fazer passar a mensagem que não é preciso fazer nada, a segurança social não tem problemas estruturais, é sustentável até 2050. É uma disputa que aproveita objectivos ideológicos/políticos, totalmente inútil numa perspectiva do bem comum, que é também alimentada pelo negócio mediático. Cria um clima perigoso, assusta e provoca intranquilidade nas pessoas. As pessoas estão assutadas, já estavam em resultado dos efeitos da crise. Estamos perante uma matéria que exige esclarecimento. As pessoas têm direito a saber o que se está efectivamente a passar.
Nem uns nem outros têm razão. Entre não fazer nada e decretar a falência há trabalho para fazer. O desequilíbrio das contas da segurança social por causa do fenómeno do envelhecimento demográfico – aumento de esperança de vida, logo mais anos de pensões para pagar, e redução da taxa de natalidade, logo menos contribuições para financiar as pensões – não surgiu a semana passada, é um facto há muito conhecido e estudado. Acontece que a crise veio evidenciar que é preciso tomar medidas. Não há uma solução única, terá que haver um conjunto de medidas. As reformas da segurança social são politicamente difíceis porque mexem com direitos essenciais das pessoas e exigem muita cautela para manter a coesão social e para que haja uma justa repartição inter-geracional dos custos/benefícios. É uma daquelas áreas que deveria exigir um alargado consenso político e social.
Uma nova reforma da segurança social não será possível fazer às escondidas do país - como aconteceu com a “reforma” de 2006 - o que coloca, em particular, uma grande responsabilidade no governo na forma como vai gerir a comunicação, de modo a manter a confiança das pessoas, sem comprometer soluções e capacidade de negociação, e ao mesmo tempo atenuando que campanhas marcadamente ideológicas lancem nuvens que prejudiquem um debate lúcido e sério. Seria bom que a sociedade civil contribuísse activa e responsavelmente para este debate.

Lírios


São muitos os dias em que temos necessidade de lhes dar significado e tirar algum sabor. Habitualmente são os dedicados ao estranho descanso que mais angústia provocam, daí, muito provavelmente, a depressão inerente ao domingo à tarde, tão bem retratada por Namora numa obra com o mesmo título. Depois do almoço, em que foi patente a inércia de um dia de primavera acompanhado do barulho e conversas típicas de quem tem necessidade de almoçar, por enquanto ainda vamos tendo, senti o pulsar do tempo e o envelhecer do corpo. Para remediar os seus efeitos abalei sem convicção à procura de algo que me enchesse ou justificasse mais um dia de existência. O corpo estava minimamente compensado e abastecido para longas horas e o sol convidava a um pequeno passeio, o resto deixei à mercê do tempo e da fortuna. Acabei por tropeçar num estabelecimento aberto aos domingos onde sempre se podem ver algumas coisas, úteis e, sobretudo, inúteis, mas suficientes para, eventualmente, desencadearem apetência à aquisição de algo capaz de tranquilizar a alma, dando-lhe uma espécie de alimento ou de energia capaz de a entreter ou de ajudar a passar o tempo angustiante que me martirizava.

Vi um canto cheio de estampas e molduras, desengonçadas, sujas, algumas rasgadas, sem qualidade ou interesse nenhum, mas, mesmo assim, desafiou-me a espiolhar, quem sabe se no meio de tanta tralha inútil não apareceria algo que me enchesse as medidas ou fosse suficiente para despertar a minha atenção. O dia ia a galope e eu necessitava de algo para o justificar. Muitas vezes a única justificação que encontro é acariciar o tempo. Eis que, no meio da inutilidade concentrada, filha de um qualquer ser humano perdido por esse mundo, me deparei com um quadro a representar lírios. Não é que fosse de grande qualidade, mas tinha alguma beleza e despertava sentimentos de prazer. Olhei, toquei, apreciei e fiquei de olho nele. Peguei-lhe com medo de que alguém o adquirisse, como se ali, naquele espaço, e no mesmo tempo, houvesse um outro louco como eu à procura de uma justificação para um tarde primaveril. Não é que fosse impossível, mas era altamente improvável, porque para aquelas bandas adormecem alguns exemplares que ando a cobiçar há muito. Uma espécie de desafio, quero adquiri-los, mas não faço, aguardo que alguém os leve. O que é que eu ganho com isso? Nada, pelo contrário, por vezes até perco, porque ao chegar vou ver se ainda estão no mesmo sítio, e quando não estão arrependo-me de não os ter adquirido. Nessa altura ficam dissipadas quaisquer dúvidas sobre o meu real interesse. Paciência. Rapidamente desvaneço os meus sentimentos de frustração, descarregando sobre algo que me dê prazer.

Neste caso, quadro com um vaso de lírios, não deixei que testasse a apetência de outro. Uma ninharia. Às vezes, coisas interessantes e belas são etiquetadas com um valor desprezível. Depois fiquei na dúvida se o adquiriria por causa do baixo preço, da arte inerente ou do valor simbólico dos lírios.

Veio-me à memória a obra de Érico Verissimo, Olhai os lírios do campo, em que o título é justificado quase na parte final, quando Eugénio, médico, se lembra de citar Olívia, a sua colega, a sua amante, a sua dor, o seu passado, o seu fantasma constantemente presente, que, um dia, lhe citou uma passagem bíblica, "Observai como crescem os lírios: não fiam, nem tecem. Porém, digo-vos que nem mesmo o rei Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles". O impacto desta frase foi determinante para que o protagonista da obra passasse a ver o mundo de outra maneira, em que "a felicidade não é sinónimo de sucesso nem de conforto", mas sim de dedicação e empenho em favor dos outros. Não é por acaso que o lírio é, desde sempre, considerado como sinal de pureza e incorporado nas diferente mitologias como forma de expressão de nobres sentimentos humanos.

Num mundo angustiante é preciso deixar a mente permanentemente aberta para que possamos absorver novas fragrâncias, novas ideias e novos ideais, "não para ganhar a vida, mas para ter a certeza de existir".

Quem diria que ver "lírios", coisas simples, banais, fáceis de encontrar, provoca sensações diferentes, agradáveis e reconfortantes? Agora, sempre que puder, irei "olhar para os lírios do campo", através do quadro com lírios, um quadro simples, perdido, ignorado. Realmente nem Salomão se vestiu como um deles...