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domingo, 19 de janeiro de 2014

Sabor a marmelada

Senti o convite da solidão de domingo para que o preenchesse. Afinal o domingo à tarde também sofre de depressão. Falta-lhe algo que preencha e justifique o seu respirar. O domingo não foi feito para descansar, mas sim para meditar, brincar, amar e sonhar. Fiz-lhe a vontade e trabalhei. Em troca deu-me uma moeda de ouro de paz. Gostei da oferta. Com ela, no bolso da imaginação, fiz o que faço a meio da tarde de um domingo. Subi a encosta e as escadas e dei um pouco de conversa. Em troca deram-me lembranças que já não me recordava. - Sabes. Disse-me uma senhora que me cumprimentou de forma efusiva e que me incomodou. Não a reconheci a princípio. Só ao fim de alguns instantes é que me apercebi quem era. Não tinha, na altura, os neurónios ligados na área do reconhecimento facial e oral, embora julgue que, mesmo que os tivesse a funcionar em pleno, iria ter alguma dificuldade. Estava diferente, em tudo, na cara, claro, e numa desinibição preocupante. Mas ia lá, sem dúvida. Olhei-a e fui dar-lhe um beijinho. - Sabes. Num tom alto para que todos pudessem ouvir. - Em pequeno dei-te uma valente palmada no rabo. Vi logo que não ia sair nada de bom. Um generoso riso de orgulho e de gozo inundou-lhe a face, como quem diz, "eu bati naquele senhor que está ali sentado". Quem diria, não é verdade? - Sabem porquê? Agora não era para mim que se dirigia mas para a pequena multidão em redor. - Eu vivia perto da casa dele quando era pequeno e a mãe teve de sair e pediu-me para tomar conta do rapaz. Eu disse-lhe que sim. Passado algum tempo reparei que as malgas de marmelada que a mãe tinha feito estavam todas furadas com o dedo. O rapaz andou a experimentar todas as malgas! Quando vi aquilo fiquei varada e dei-lhe uma valente palmada no rabo. Pois, teve que ser. Já viram o que ele fez, e ainda por cima a mãe tinha-me pedido para tomar conta dele. A satisfação com que contava a história era mais do que evidente. Olharam todos para mim para ver como é que reagia o rapador de marmelada caseira. Sorri e não disse nada. Limitei-me a navegar no tempo e, sinceramente, não me recordo da palmada. Talvez com algum esforço pudesse lá chegar, mas como levava tantas, esta deverá ter passado despercebida. No entanto, subiu-me ao miolo algumas imagens de malgas com marmelada acabada de fazer e que estavam a "secar". Todas elas tinham algo em comum, um buraco. Deve ter sido verdade, porque a outra memória, a do "gosto", estremeceu de prazer com o sabor da marmelada armazenada, um sabor de longa data que ainda está em boas condições. Se está! 
Afinal, a moeda de ouro que o domingo me ofereceu não era de ouro, mas de uma saborosa marmelada feita pela minha mãe. 
Um sabor que perdura...

4 comentários:

Bartolomeu disse...

Que saudades dessa marmelada confecionada pelas mãos doces das mulheres da casa... Um ritual inebriante que ia desde o aroma da fruta passava pelo aroma da cozedura e acabava fundido no paladar.
Ó Senhor Professor, diga-me cá; não acha que as mulheres são umas perfeitas alquimistas? Conseguem transformar fruta em ouro, sem usar o enxofre...
;)))

Massano Cardoso disse...

O senhor bem sabe que sim.

Suzana Toscano disse...

Quando o meu sogro me via na cozinha dizia sempre "então estás no laboratõrio?" A marmelada é um dos símbolos mais duradouros desse ambiente doméstico e do modo como as economias familiares sabiam preparar-se para o Inverno aproveitando os frutos da época. Agora, com as arcas congeladoras, é possível ir gerindo a matéria prima ao longo do ano, e assim há sempre marmelada fresquinha à espera de um guloso que não resista a prová-la acabadinha de fazer!

Massano Cardoso disse...

Eu não me importava de "meter o dedo", mas, enfim, tenho que resistir...