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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Uma rosa e uma cruz...

Entraram os olhos, olhos que ofuscaram tudo, olhos tristes, olhos interrogadores, olhos que não escondiam a dúvida, o medo e a ansiedade. 
A conversa iniciou-se num tom baixo, mais baixo do que é habitual o que me obrigou a reforçar a atenção, já de si presa ao seu enigmático olhar. Pequenos e curtos cumprimentos deram seguimento à pergunta sacramental. Ao responder, de uma forma inquietante, baixou ainda mais a voz. Tive que fazer um enorme esforço para a entender, mas ouvi, sou uma doente oncológica. Sou uma doente oncológica, repetiu. Não disse nada e procedi ao interrogatório nesse sentido com muito cuidado. Explicou-me que teve um tumor na mama. Foi operada. Fez posteriormente o tratamento complementar que é devido nestas circunstâncias. Mas agora já não está a tomar nada, não é verdade? Sim. Agora não tomo nada. Ótimo, então as coisas estão bem. O exame continuou e ao auscultá-la vi, no lugar onde tinha nascido o seu drama, uma bela tatuagem, uma rosa vermelha com duas folhas verdes a esconder uma cruz inclinada. Que estranho, pensei, uma rosa tão bem desenhada a tentar esconder uma cruz inclinada. Interrompi o meu pensamento para tentar ouvir os sons cardíacos, mas nem sei se os ouvi bem, porque quis interpretar aquela simbologia, a beleza e o amor de uma rosa a querer esconder a cruz de uma vida. Evidentemente que não podia permanecer naquela situação por mais tempo, embora quisesse fazer-lhe algumas perguntas. O exame continuou e, no final, disse-lhe que a reconstrução mamária estava muito bem feita. Explicou-me que tinham tirado a pele do dorso. Foi então que me atrevi a comentar que tinha uma bela tatuagem. Sorriu pela primeira vez e desnudou-se o suficiente para a mostrar. Agora a situação era diferente. Explicou-me que a tinha feito por dois motivos, para tentar esconder a cicatriz e para gravar a "cruz da sua vida". Foi a minha vez de sorrir, foi o que eu pensei, tenho de a felicitar, tem uma tatuagem muito delicada, uma pequena maravilha. Olhou-me e, pela primeira vez, sorriu de uma forma solta, genuinamente livre, com olhos tranquilos e felizes, dizendo um sonoro, muito obrigada! Despediu-se, primeiro os olhos, depois ela. Ainda lhe disse, desejo-lhe muitas felicidades e não se esqueça de sorrir, olhe que tem a mais bela tatuagem que já vi até hoje. Foi então, que os olhos se voltaram novamente para mim, agradecendo de uma maneira que só outros olhos podem ver e sentir e nunca desenhar, porque para isso seria preciso saber tatuar uma alma...

1 comentário:

just-in-time disse...

O seu post é superlativo: não deve ser comentado!
É perturbadora a humanidade com que se entrega ao seu mister. Obrigado por partilhar connosco.
Um abraço